- Em um mundo ESG, os criptoativos ainda não são sustentáveis. O processo de mineração de criptomoedas consome muita energia elétrica e aumenta exponencialmente o consumo de energias não-renováveis
- No âmbito social, o criptoativo tem função intrínseca de garantir a propriedade do bem ao próprio usuário, mas esbarra em questões como possíveis fraudes e a questão ambiental
- Tratando-se de governança, a natureza descentralizada das blockchains permite transparência a todo o processo, mas também facilita a ocorrência de transações ilegais, por isso é fundamental um novo marco regulatório
Os recorrentes casos de insolvência, pedidos de falência ou o simples desaparecimento de exchanges trazem a constante sensação de que ainda estamos diante de um mercado de alto risco, com possibilidade de grandes eventos de quebra de confiança junto aos investidores e ao ecossistema como um todo.
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Por outro lado, ainda temos o chamado mercado financeiro tradicional, bastante regulado e que, apesar de não estar isento de problemas, conta com mecanismos de proteção sistêmicos, como planos de ajuda de bancos centrais ou até mesmo fundos garantidores de crédito, como o FGC, no Brasil.
Neste sentido, diante dos impactos causados por quebra de empresas de criptoativos, quais as reflexões possíveis acerca desse ecossistema diante do mundo ESG?
E (Enviromental – Meio Ambiente)
A origem de uma criptomoeda se dá por meio da Mineração, processo que requer a solução de uma equação matemática com grau de complexidade crescente, o que exige uma capacidade computacional e consumo de energia cada vez maiores.
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Considerando que as principais fontes de produção de energia elétrica no mundo são carvão mineral, derivados de petróleo e gás natural, que liberam gases de efeito de estufa (GEE) em sua queima, a mineração de criptoativos traz como consequência direta o agravamento da crise climática.
Segundo o Atlas da Energia, da Agência Internacional de Energia (IEA, em inglês), e as estimativas populacionais da ONU, a energia usada pela criptomoeda passou a superar a demanda de países como as Filipinas (99,2 TWh, 109,5 milhões de pessoas).
Portanto, cabe a reflexão se em tempos de busca da redução de GEE, nos termos do Acordo de Paris, esse trade off é valido ou até mesmo se ele se paga.
S (Social)
Em sua concepção, os criptoativos possuem uma função social intrínseca. Como não são controlados por governos ou bancos centrais, eles podem garantir reserva de valor e poder de compra a populações mesmo em situações de ditaduras, confisco de reservas ou outras situações abusivas.
Por outro lado, a alta demanda por insumos desses ativos pressionam os preços da energia elétrica e de componentes eletrônicos (computadores e smartphones), que vão impactar diretamente governos e famílias.
Além disso, os impactos sociais decorrentes das fraudes e/ou utilizações indevidas ou para propósitos escusos desses criptoativos geram prejuízos e danos às pessoas e à sociedade de modo geral, não atendendo assim o objetivo de sua concepção.
G (Governança)
Este talvez seja o principal aspecto a ser observado quanto ao ecossistema de criptoativos, pois é certo que a essência descentralizada, não regulada e, portanto, sem qualquer fiscalização acaba por propiciar que as criptomoedas sejam utilizadas por contraventores em mercados de transações ilícitas, dando espaço a graves implicações de rompimento de ética.
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Nas instituições financeiras tradicionais, ao contrário, vimos regras rígidas de salvaguarda de ativos, modelos estruturados de prestação de garantias, segregação de funções entre atividades corporativas, manutenção de ativos compulsórios líquidos e limites de alavancagem, que mantém rígidos padrões de governança e transparência.
Evidentemente que grande parte dos players que operam criptoativos atua de forma idônea e correta, e buscam alternativas na autorregulação para oferecer maior credibilidade e confiabilidade a esse ecossistema tão inovador e disruptivo.
Criptoativos e o novo Marco Legal
Em dezembro de 2022, o mercado de criptoativos movimentou cerca de R$ 300 bilhões por meio de Exchange de criptomoedas centralizadas, de acordo com o Banco Central do Brasil. .
Para se ter um parâmetro de comparação, esse volume de negociação equivale à metade do total das operações da B3 formadas por produtos de investimento de renda variável, como ações, fundos, BDRs e ETFs, e representam cerca de 27% do valor depositado em poupança, que continua sendo o investimento favorito dos brasileiros.
O forte crescimento dos criptoativos nos últimos meses certamente reforça a necessidade de uma regulação com regras mais claras para todos os participantes do ecossistema.
Por isso, é tão importante para o mercado que o Marco Legal dos Criptoativos seja sancionado, pois visa a definir as normas a serem seguidas por todos os intermediários dessas operações, desde prestadores de serviços de ativos virtuais, como exchanges, até bancos e instituições de pagamento que oferecem serviços correlatos.
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O objetivo dessa legislação é prover segurança jurídica, estabelecendo ações claras para proteger não apenas os consumidores que investem em criptoativos, como também as empresas que estão empreendendo nesse universo e demais participantes, propiciando maior e melhor oferta de serviços para atendimento dessa demanda crescente.
A legislação traz boas práticas de governança corporativa, aspectos de segurança da informação, mecanismos de controle e de gerenciamento de riscos, proteção de dados pessoais e aspectos relacionados à proteção dos consumidores, que são, na realidade, regras gerais e principiológicas que valem para qualquer empresa de qualquer segmento. A partir dessa legislação, será iniciada a construção de todo um arcabouço regulatório pela autoridade competente a ser designada no momento da sanção do projeto de lei.
Órgão regulador
É provável que o Banco Central seja designado como autoridade para regular o mercado de ativos digitais, que levará certo tempo para redigir as normas infralegais administrativas, as quais trarão os detalhes de como vão operar os participantes do mercado, como se dará o processo de obtenção de autorização para que esses possam atuar e quais serão os mecanismos de controle de observância regulatória.
No entanto, uma questão importante que já ficou clara no Marco Legal é que as prestadoras de serviços de ativos digitais deverão ser registradas no Brasil, com CNPJ aberto e regular, para obterem autorização de funcionamento. Portanto, é essencial que as instituições que almejam atuar nesse ecossistema comecem desde já a organizar-se nesse sentido.
As instituições já autorizadas pelo Banco Central podem optar por prestar cumulativa ou exclusivamente os serviços relacionados a ativos digitais e, neste caso, pode-se esperar um nível de observância e exigência regulatório similar ao existente para os serviços tradicionais que prestam.
Quando os ativos digitais representarem valores mobiliários e houver escrituração, oferta, custódia e liquidação desses ativos, seguem valendo todas as regras da Comissão de Valores Mobiliários (CVM), como as do Parecer de Orientação CVM 40.
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Thiago Brehmer é sócio-líder de Serviços Financeiros da Grant Thornton Brasil