O que este conteúdo fez por você?
- Tudo o que foi vivenciado nos últimos dias tem como base as dores do processo de transformação pelo qual o velho e trincado presidencialismo de coalizão está passando
- Com o orçamento secreto, o poder de definição de onde e como seriam executados parte dos recursos do Orçamento da União passou a ficar nas mãos dos congressistas
A semana passada em Brasília foi de muitos embates acalorados, ameaças e recados entre as principais lideranças da Câmara e o Palácio do Planalto. Tudo o que foi vivenciado nos últimos dias tem como base as dores do processo de transformação pelo qual o velho e trincado presidencialismo de coalizão está passando.
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Para avançarmos na análise das principais peças desse quebra cabeça é preciso dar alguns passos atrás e olhar a floresta sobre uma ótica que conversa com a origem do presidencialismo de coalizão, termo criado pelo cientista político Sérgio Abranches.
Superpoderes ao presidente
Durante a elaboração da Constituição de 1988, que estabeleceu a Nova República, os constituintes definiram um arranjo institucional que deu amplos poderes para o presidente da República e para a União em detrimento dos demais entes federativos.
Boa parte desse poder está no fato de a União deter um volume maior de recursos públicos e discricionaridade para utilizá-lo, em comparação com os demais entes.
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Dentro desse contexto, é válido dividir com você um trecho do livro “O presidencialismo de coalizão no Brasil”, em que o cientista político Luis Guimarães traz uma avaliação de outros estudiosos do tema: “Fernando Limongi e Argelina Figueiredo, ao analisarem a correlação de forças no presidencialismo resultante da Constituição de 1988, concluíram que houve um acentuado processo de centralização de poderes e atribuições no presidente da República, como forma de assegurar-lhe o poder de agenda no âmbito do Parlamento. Segundo os autores, a centralização decisória no presidente da República, contribui para aumentar o sucesso presidencial e sua dominância legislativa. Por sucesso presidencial, leia-se, a capacidade do presidente em impor suas diretrizes e prioridades governamentais, e conseguir aprová-las no âmbito do Parlamento”.
Ou seja, a Constituição de 1988, aprovada pelos próprios congressistas, colocou o presidente da República como protagonista do cenário político, detentor da agenda e criou uma “disfuncionalidade” na relação entre os Poderes, em especial entre Executivo e Legislativo.
Luis Guimarães destaca ainda em seu livro que ao ampliar significativamente a discricionariedade do Executivo sobre a execução do orçamento da União, a Constituição concedeu ao presidente o “monopólio do poder de alocar recursos orçamentários”, garantindo-lhe “recursos expressivos” e “um poder extra de barganha e negociação de lealdade” para “formar coalizões de governo”.
Por outro lado, a Carta Magna também abriu caminho para se reestabelecer o multipartidarismo, o que, por sua vez, deu origem a uma composição congressual bastante fragmentada e heterogênea.
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Se você der uma olhada nas composições do Congresso vai notar que da Constituição para cá nenhum partido do presidente eleito teve maioria na Câmara e no Senado. Isso de certa forma faz com que o mandatário de plantão, apesar da concentração de poderes, tenha que compor com outras legendas para conseguir formar maioria.
É aí que nasce a necessidade de se estabelecer o presidencialismo de coalização. E disso surge o jogo em que o Executivo e o Congresso, ao se sentarem na mesa de negociação, não podem dar tudo no primeiro lance para terem o que barganhar nos próximos rounds.
Instrumentos para formar uma coalizão
No jogo entre Executivo e Congresso, desde 1988 as principais cartas utilizadas para formar maioria nas duas Casas são as indicações para cargos de primeiro, segundo e terceiro escalão e a liberação de emendas parlamentares.
Em relação a esse último ponto, de uma forma bem simplificada, cabe ao Poder Executivo elaborar a lei orçamentária e os ministérios executarem os programas previstos na plataforma de governo. Parte dessa execução é feita a partir das emendas parlamentares.
Na prática, os deputados e senadores batem na porta dos ministros e oferecem as emendas para executar esse ou aquele projeto do governo, previsto na Lei Orçamentária. Logicamente que boa parte das emendas é usada como um ativo político/eleitoral e destinada aos Estados e municípios do parlamentar.
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Em março de 2015, o Congresso aprovou uma Emenda Constitucional que tornou impositivo (obrigatório) o pagamento das emendas individuais dos deputados e senadores. Em 2019, estendeu essa obrigação para as emendas de bancada estadual.
Isso de certa forma reduziu o poder de manejo orçamentário do presidente da República, que, por outro lado, ainda detém a prerrogativa de definir o ritmo de liberação dos recursos.
Dominância em xeque
Com a implementação do “orçamento secreto” em 2020, o jogo das emendas virou. O poder de definição de onde e como seriam executados parte dos recursos do Orçamento da União passou a ficar nas mãos dos congressistas.
Sob o argumento de que é o parlamentar que conhece a realidade lá na ponta, o critério para a execução das emendas passou a ser de interesse de cada deputado e senador e não técnico-programático.
O fato é que o novo modelo de liberação de recursos do Orçamento da União trincou um dos pilares centrais do presidencialismo de coalizão e colocou em xeque a chamada “dominância legislativa” imposta pelo poder Executivo. Com a complacência do governo de Jair Bolsonaro, na prática o orçamento secreto acabou com o “monopólio do poder de alocar recursos orçamentários” que estava nas mãos do presidente da República. Isso não é pouca coisa.
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É verdade que o Supremo Tribunal Federal deu uma trava na farra. Mas já era tarde. A gota de sangue já tinha caído num oceano cheio de tubarões sedentos.
Com o Congresso empoderado, estima-se que R$ 54 bilhões do Orçamento da União foram parar na “caixinha” das emendas secretas, em três anos. Esse é um poder sobre o Orçamento que os parlamentares nunca tiveram a oportunidade de usufruir.
Correção de rota
É por essas e outras que na atual conjuntura política o simples fato de um partido ter ministros na Esplanada não é mais uma garantia de aprovação nem de uma Medida Provisória, que requer um quórum simples.
É por essas e outras que mesmo quando vemos nas manchetes que o governo empenhou R$ 1,7 bilhão em emendas num único dia, ainda encontramos recados públicos de que o governo não tem maioria e que terá dificuldades nas futuras votações.
Voltando para o início do nosso artigo e caminhando para o final. É dentro desse contexto que estamos vendo um processo de mutação do presidencialismo de coalizão, que tem hoje um de seus pilares trincados.
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O que surgirá dessa metamorfose ainda não é possível saber, porque estamos no meio do processo. Mas pelo visto última semana, percebe-se que o atual governo tem errado e vai precisar fazer um rápido ajuste de rota no sentido de acomodar um Congresso, que hoje tem uma dinâmica muito diferente daquela vivida por Lula no primeiro e segundo mandato. Vamos acompanhando.