A investidora independente

Luciana Seabra é analista e planejadora financeira certificada (CNPI e CFP®), especialista em fundos e previdência. Fundou a Indê Investimentos, que tem como princípio a ausência de vínculo com corretoras, gestoras ou bancos. Foi premiada pela CVM pelo seu trabalho de educação financeira a investidores. Está nas redes sociais como @seabraluciana, no Instagram e no YouTube, e @luciana_seabra, no Twitter

Luciana Seabra

Por que o “fee fixo” do assessor não resolve o conflito de interesse

Tive acesso a uma proposta contratual e ela mostra que o conflito segue vivo e ainda traz mais um custo para clientes

Foto: Envato
  • O modelo de “fee fixo” tem sido citado por alguns como a solução para o conflito na relação entre assessor e cliente ao investir por meio de uma corretora
  • Na proposta, o profissional é remunerado pelo cliente – que paga um percentual sobre o seu patrimônio anualmente e recebe de volta, como um desconto, as comissões pagas ao assessor pelos produtos que preenchem a carteira
  • A remuneração da corretora e o custo de corretagem não estarem incluídos no valor fixo, a taxa ser cobrada sobre a integralidade dos recursos e ativos do cliente naquela corretora e o custo para adquirir o modelo são algumas caracteristicas do modelo que podem ser problemáticas

Ainda pouco difundido, o modelo de “fee fixo” tem sido citado por alguns como a solução para o conflito na relação entre assessor e cliente ao investir por meio de uma corretora.

No modelo, o profissional é remunerado pelo cliente – que paga um percentual sobre o seu patrimônio anualmente e recebe de volta, como um desconto, as comissões pagas ao assessor pelos produtos que preenchem a carteira.

Assim, a construção do portfólio se livra dos conflitos existentes quando o profissional recebe um valor diferente dependendo do investimento escolhido, como é de praxe, chegando ao melhor resultado para quem investe, certo? Errado.

Tive acesso a uma proposta contratual de “fee fixo” recebida pela cliente de uma grande corretora. Vejo ao menos quatro problemas para quem opta pelo modelo.

O primeiro e principal problema, que mantém o conflito de interesses mais vivo do que nunca, está em uma das primeiras cláusulas. Ela é clara de que o valor fixo pago pelo cliente remunera o agente autônomo, mas não está inclusa nela a parcela de remuneração devida à corretora pela atividade de distribuição nem custos operacionais.

Por que isso é um problema? Vejamos o caso do gestor de um fundo de investimento que quer ser distribuído na plataforma de uma grande corretora. Ele precisa pagar por isso uma comissão, o chamado rebate. Desse valor, um pedaço fica com a corretora e outro com o agente autônomo, uma espécie de franquia dela, pra facilitar seu entendimento.

Onde o conflito nasce? Na definição desse rebate.

Gestoras mais novas, de pior qualidade ou com maior dificuldade de distribuição por qualquer outro motivo têm menor poder de negociação e precisam pagar valores maiores pra terem seus fundos distribuídos. Algumas das mais consolidadas, com melhor histórico de longo prazo, pagam pouca ou zero comissão. Até porque têm os clientes cativos no universo institucional e de grandes fortunas.

Ao escolher que produtos vai distribuir em suas prateleiras, ao educar suas franquias sobre eles, ao premiá-las, você há de concordar que a corretora tem um viés para produtos que pagam mais comissão – que é inversamente proporcional à qualidade.

Esse viés foi eliminado no modelo “fee fixo”? Não. O contrato é claro de que a parte da corretora segue intacta, variando de acordo com o produto. Ou seja, o “fee fixo” não é tão fixo assim.

O agente autônomo passa a trabalhar com os dois modelos, à escolha do cliente. Porém, a análise de qual ele bebe, o cardápio de produtos que ele tem à mão, o educacional ao qual é submetido, tudo isso segue conflitado.

No limite, pode ser que um produto que não pague boa comissão sequer chegue ao conhecimento desse agente autônomo. Ou na certa não será o propagandeado na oferta da semana, com uma comissão alta na cabeça.

Pois bem, esse é só o primeiro problema. Vamos ao segundo. O contrato também é claro de que o percentual fixo será cobrado sobre a integralidade (sendo essa palavra sublinhada) dos recursos e ativos do cliente custodiados naquela corretora.

Nesse caso, eu nem tinha percebido, quem me chamou a atenção para o problema foi um cliente. Frustrado com os CRAs, COEs e afins em que se arrependeu de ter travado seu dinheiro em resposta à insistência do agente autônomo, ele resolveu avaliar a alternativa de “fee fixo”.

Foi daí que esse cliente percebeu – e não conseguiu convencer seu assessor do contrário – que o custo anual ia recair sobre a totalidade do seu patrimônio. Ou seja, também sobre os investimentos que tinham entrado na sua carteira por conta das conhecidas altas comissões pagas na cabeça para distribuição daqueles produtos financeiros. E que ele não poderia resgatar sem punição.

Ou seja, para tentar consertar um problema causado pelas comissões altas pagas à corretora, esse cliente teria que pagar mais um valor à mesma corretora – o que de longe não me parece a melhor solução.

Como se não bastasse, o contrato é confuso e misturado à lista dos rebates/devoluções a que o cliente fará jus ao contratar o fee fixo aparecem vários “atenção: não haverá devolução”.

E aí está o terceiro problema. Li várias vezes o documento e não está claro pra mim tudo o que está incluso e o que não está, mas um trecho que chama a atenção é o dos Certificados de Operações Estruturadas (COEs), famosos por pagarem comissões altas para os assessores. Esses são campeões de insatisfação entre investidores que chegam a mim, travados por anos em um produto que não entenderam bem ao comprar.

Pois bem, na lista de benefícios que o cliente de “fee fixo” recebe está “devolução através de entrega de COEs adicionais em favor do cliente”. Ah, então ao aderir ao contrato, ele vai ter o “privilégio” de acessar mais COEs? Isso é bom?

E a lista de exclusões não para aí. O custo de corretagem incidente sobre cada operação com renda variável também não está incluso no fee fixo, o contrato informa. Essa é outra famosa pelo conflito que gera, enviesando a força de venda a estimular o giro de carteira, sendo que o investimento em Bolsa para o longo prazo costuma ser o de melhor resultado.

Para fechar, chegando ao meu quarto ponto, ainda cabe discutir se o valor que o cliente paga para integrar o modelo supostamente menos conflitado não é oneroso demais. Na proposta que a cliente repassou a mim, ele começa em 1% do patrimônio dela ao ano.

Os rebates infelizmente não são transparentes, mas, pela minha experiência, especialmente se os ativos que compõem a carteira forem bons, mesmo depois de revertidas as comissões, haverá um custo adicional não desprezível para essa cliente, que se somará às várias taxas que já são pagas nos produtos.

Dado que o conflito segue vivo – e pulsante – o “fee fixo”, que tem sido tão propagandeado, é aos meus olhos nesse caso somente mais uma fonte de receita para a corretora. E, sendo assim, está longe de ser a melhor opção para clientes.