A investidora independente

Luciana Seabra é analista e planejadora financeira certificada (CNPI e CFP®), especialista em fundos e previdência. Fundou a Indê Investimentos, que tem como princípio a ausência de vínculo com corretoras, gestoras ou bancos. Foi premiada pela CVM pelo seu trabalho de educação financeira a investidores. Está nas redes sociais como @seabraluciana, no Instagram e no YouTube, e @luciana_seabra, no Twitter

Luciana Seabra

Na relação com o assessor, a transparência basta? Eu acho que não

Termo de ciência sobre atuação do assessor de investimento tem causado estranheza entre investidores

(Foto: Envato Elements)
  • Resolução 178, que começou a valer este ano, obriga corretoras a darem transparência sobre potenciais conflitos de interesse de assessores
  • A transparência é um avanço, mas causa uma sensação de estranheza e desamparo, como de quem chega ao médico e é levado a assinar um termo em que ele assume ser sócio da farmacêutica
  • A solução passa pelo desenvolvimento do mercado de consultoria e análise independente

Recebi mensagens de alguns clientes nas últimas semanas perguntando se deveriam assinar um termo enviado pela pessoa que os atende na corretora.

No documento, chamado de “Termo de Ciência sobre Atuação do Assessor de Investimento”, um item em especial causou estranhamento. Nele está escrito que o cliente está confirmando ao assinar o termo que, citando literalmente, “os interesses do assessor de investimento podem entrar em conflito com meus interesses, especialmente em razão da forma como ele é remunerado em decorrência das minhas decisões de investimento”.

As corretoras não acordaram com uma crise de “sincericídio”, com sua licença para usar um neologismo dos nossos tempos. Foi uma exigência da Comissão de Valores Mobiliários (CVM). Na resolução 178, que começou a valer neste ano, o órgão regulador do mercado determinou que elas deem transparência sobre os potenciais conflitos dos assessores.

A transparência é um avanço, claro. E ela não para aí. No texto da nova instrução de fundos, a 175, que começa a entrar em vigor em outubro deste ano, tem mais. Segundo o documento, os fundos serão obrigados a divulgar a taxa de distribuição – ou seja, com qual fatia da taxa de administração do produto fica a corretora.

Já tenho ouvido pelos corredores caminhos criativos do mercado para limitar essa transparência. Seja como for, quero acreditar que será possível em algum momento analisar as recomendações de assessores de troca de um fundo por outro com uma informação valiosa a mais: quanto ele ganha a mais se optarmos por ouvi-lo.

Diante da visibilidade crescente dos produtos, é claro que precisamos comemorar. Não posso deixar de notar, entretanto, o desconforto dos clientes em assinar o documento. E eu estou com eles na pergunta: será que transparência basta?

Talvez o cliente não esperasse que a corretora aceitasse tão explicitamente que o modelo de remuneração criado por ela própria – e sobre o qual portanto tem controle – coloca os interesses do assessor em conflito com os seus.

Imagine chegar a um médico e ter que assinar um termo como esse no meio da consulta? Deveria ser obrigatório de fato se ele recebesse comissão pelos remédios que indica. Agora, não daria uma sensação de desamparo ser confrontado com essa verdade?

E talvez aí esteja um grande problema na relação entre assessor e cliente: ele ainda ser visto por tantos como o médico e não como o sócio da farmacêutica – muito menos o portador dos dois crachás.

Também seguindo uma exigência da CVM, o termo da corretora deixa claro que o assessor está proibido de “gerir meus recursos, atuar como meu consultor ou realizar análise de valores mobiliários”.

Aproveitei o ensejo e fiz uma enquete no meu Instagram, em que havia duas opções: “Meu assessor de fato só oferece produtos” e “Às vezes meu assessor faz análise” – 51% dos 187 respondentes ficaram com a opção 2.

Enquanto essa confusão de papéis não for resolvida, o investidor seguirá refém dos conflitos, mesmo que ciente deles. O mercado de consultoria e análise independente – sem vínculo com corretoras ou bancos e em que profissionais não são comissionados, recebem somente de clientes – precisa se desenvolver para haver uma solução real.

Se tenho alguma esperança no efeito de toda essa transparência, ela veio das conversas com assessores que alguns clientes copiaram e me encaminharam. No pedido de assinatura e no papo sobre o termo, havia um constrangimento pairando no ar. E quem sabe daí venham mudanças. Já recebo muitas mensagens de assessores cansados do modelo de comissionamento existente hoje.

Enquanto isso não acontece, do meu ponto de vista aqui, enxergo a mente do cliente funcionando mais ou menos assim: “Legal, entendi que quem eu via como médico é na verdade o sócio da farmacêutica, mas… e agora? Que remédio eu tomo?