Imóveis quitados vão a leilão para pagar investidores de CRIs; entenda o caso
Construtora Infinita atribui dívida à suposta ingerência da Cartesia Capital e Habitasec; Procuradas, Habitasec afirma que incorporadora não repassou os recursos dos imóveis quitados, enquanto Cartesia Capital diz não ter mais participação direta nos CRIs
A justiça e CVM investigam as irregularidades envolvendo os CRIs da Infinita (Foto: Adobe Stock)
O médico Nathanael Cabrera, de 38 anos, pagou à vista por um apartamento ainda em construção na cidade de Porto Alegre-RS. Antes de receber as chaves, foi surpreendido com a notícia de que seu imóvel iria a leilão para pagar dívidas de Certificados de Recebíveis Imobiliários (CRIs), instrumentos financeiros negociados no mercado de capitais que captam recursos para financiar empreendimentos imobiliários. A venda deveria ter ocorrido no dia 21 de janeiro, mas a Justiça do Rio Grande do Sul barrou o leilão e concedeu a posse do imóvel ao médico apenas em setembro.
O caso dele, porém, não é o único. Outras 54 unidades já quitadas por outros proprietários passaram pela mesma situação. O E-Investidor apurou que, em agosto, a Associação dos Adquirentes do Empreendimento Infinita Life.Co (AAEILC), organização criada para representar coletivamente os compradores prejudicados, conseguiu na Justiça gaúcha impedir outros leilões.
Os CRIs foram criados para financiar a construção de empreendimentos residenciais da Incorporadora Infinita via Sociedades de Propósito Específico (SPEs) – organizações empresariais criadas para o desenvolvimento de um único projeto – e negociados no mercado financeiro. Os apartamentos foram colocados como garantia aos investidores, caso a empresa não conseguisse quitar a dívida.
Areportagem teve acesso a quatros contratos de compra e venda das unidades. No documento, é possível identificar que os adquirentes foram orientados a transferir os recursos da compra dos imóveis para uma conta bancária da Infinita em vez de uma conta centralizadora, que deveria reunir os recursos dos credores dos CRIs.
Essas contas são abertas para concentrar e controlar o fluxo financeiro de uma operação como essa. O objetivo é garantir que os recursos das vendas dos imóveis cheguem à estrutura do CRI. No caso da Infinita, a conta é administrada pela Habitasec, securitizadora responsável pela emissão e oferta dos títulos de dívida no mercado de capitais.
“Isso evita que o incorporadora use os valores para outros fins. É um mecanismo básico de segurança e governança em operações de crédito imobiliário estruturado”, diz Danilo Barbosa, sócio e Head de Research do Clube FII.
Ao E-Investidor, a Infinita reconhece que alguns pagamentos dos clientes foram realizados fora da conta centralizadora, mas ressalta que o problema ocorreu em um “número limitado de contratos”, além de ter sido comunicado à Justiça. A empresa acusou ainda a Habitasec de interferir na gestão dos recursos das obras, comprometendo o fluxo de pagamentos da construtora e o repasse dos recursos aos investidores.
Procurada, Habitasec esclarece que a execução das garantias teve início em junho de 2024, quando os credores dos CRIs optaram, em assembleia geral extraordinária (AGE), pela antecipação do vencimento dos ativos.
“Percebemos que alguns clientes pagaram pelos imóveis, mas os recursos não foram repassados para a operação (os CRIs). Solicitamos o repasse desses recursos por parte da Infinita aos credores e não tivemos acesso a nenhum comprovante de quitação”, diz Marcos Ribeiro do Valle Neto, sócio e diretor da Habitasec.
Eles recorreram ao poder judiciário pelo direito de leiloar os apartamentos. Em setembro, tiveram uma vitória parcial. O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul suspendeu a venda dos imóveis, mas exigiu que a Infinita regularizasse as suas obrigações financeiras com os investidores. Caso a determinação judicial não fosse cumprida, os leilões dos imóveis quitados seriam retomados.
Alerta para o mercado
O imbróglio chegou à Comissão de Valores Mobiliários (CVM), que analisa o caso desde agosto por meio da Superintendência de Securitização e Agronegócio. A denúncia, enviada pela própria Infinita à autarquia, acusa a Habitasec de cometer irregularidades na execução das garantias dos CRIs ao incluir apartamentos já quitados nos leilões. A securitizadora, por sua vez, disse que não foi consultada formalmente pela CVM.
A Cartesia Capital, gestora que investiu nos CRIs por meio do seu fundo imobiliário Cartesia Imobiliário (CACR11), também é citada na denúncia por omitir fatos relevantes e de praticar insider trading – considerada ilegal no Brasil e na maior parte do mundo. Isso porque, nos anos 2022 e 2023, a gestora não comunicou aos cotistas do Cartesia Imobiliário (CACR11) o pedido de falência contra as SPEs que tramitava na Justiça do RS.
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Ao E-Investidor, a gestora afirma que não foi notificada pelo órgão regulador sobre qualquer processo em andamento e ressalta que não tem mais participação direta com os CRIs, além de atuar em conformidade com as regras da CVM e com as práticas de governança que asseguram transparência e proteção aos investidores. Ela argumenta também que, como não houve decretação de falência das SPEs, o fato não foi comunicado.
No entanto, na ótica de especialistas, o pedido de falência dos emissores dos CRIs adiciona um risco e que os investidores precisariam estar cientes.
“Todo evento que pode aumentar ou desvalorizar o ativo ou influenciar a decisão de investir ou sair do investimento deve ser divulgado. Naturalmente, um pedido de falência da incorporadora é fato relevante que deveria ser comunicado”, diz Ermiro Ferreira Neto, professor em direito imobiliário.
A Infinita também incluiu a Cartesia nas acusações de interferência na gestão dos recursos dos seus empreendimentos. No documento, a incorporadora cita transcrições de conversas de Richard Hoffmeister Sippli, diretor de gestão da Cartesia Capital, nas quais ele teria afirmado administrar o “dia a dia” do caixa das obras.
Na prática, esse tipo de conduta não costuma ser comum em operações de crédito imobiliário. Barbosa explica que o papel do gestor cabe apenas acompanhar e cobrar o cumprimento contratual dos CRIs, especialmente se houver algum evento de atraso ou inadimplência. “Quando o gestor passa a interferir na execução do projeto, cruza a linha entre fiscalizar o crédito e assumir corresponsabilidade operacional, o que não é previsto em contrato nem em regulação hoje”, ressalta o especialista.
O E-Investidor procurou Richard Hoffmeister Sippli para comentar sobre a acusação, mas o nosso pedido de posicionamentos não foi respondido. Reforçamos que o espaço continua aberto.
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Já nos relatórios gerenciais do FII Cartesia Imobiliário (CACR11), a Cartesia Capital esclarece que adota uma gestão ativa, na qual inclui a participação em cada etapa dos empreendimentos financiados e a exigência dos incorporadores comprometimento com a boa execução do empreendimento.
O caso ainda aguarda um parecer técnico da CVM. Se a autarquia concluir que houve irregularidades, um processo administrativo sancionador será aberto para definir eventuais penalidades.
O desfecho desse imbróglio, no entanto, não interessa apenas aos envolvidos no problema. As consequências também recaem sobre a credibilidade do mercado de capitais, que fomenta alternativas de financiamento para o setor imobiliário.
Em julho deste ano, um levantamento da Uqbar, plataforma de dados sobre o mercado de finanças estruturadas, alertou para as falhas de transparência ao identificar que 42,7% dos informes de CRIs enviados à CVM no mês de maio apresentaram ao menos uma divergência de informação.
Para André Neves, sócio do escritório BZCP Advogados, esse retrato reforça a necessidade do investidor de buscar securitizadoras e gestoras mais confiáveis antes de investir em ativos imobiliários, como CRIs e fundos imobiliários.
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O alerta também serve para as pessoas que desejam comprar imóveis, especialmente quando o empreendimento ainda será entregue. Nessas situações, a recomendação é verificar, nos contratos de compra e venda, se as unidades foram colocadas como garantia em alguma operação de investimento.
“Em muitos contratos consta que durante a obra e até a entrega das chaves o imóvel fica alienado fiduciariamente. Ou seja, foi dado em garantia. Esse é o formato mais comum, embora haja também casos de penhor ou hipoteca”, afirma Neves
As orientações ajudam a minimizar os riscos de se envolver em casos semelhantes aos dos CRIs da Infinita, em que a Justiça do Rio Grande do Sul e a CVM tentam desvendar o destino dos recursos dos apartamentos já quitados.