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Entenda por que alguns produtos estão encalhados na China e nos EUA

De consumidores ressabiados às restrições contra covid, os gigantes encaram problemas com estoques de produtos

Entenda por que alguns produtos estão encalhados na China e nos EUA
Economia global se mostra muito desafiadora para empresas chinesas e americanas – Foto: Shutterstock/dreamnikon/Reprodução
  • Os estoques chineses estão aumentando como consequência da política de “tolerância zero contra a covid-19” do governo, que fez diminuir os gastos dos consumidores nos últimos meses
  • Em abril, as importações dos EUA caíram US$ 13 bilhões em comparação com os níveis de março
  • As gigantes da indústria também estão sentindo a pressão. No ano passado, os estoques dos fabricantes aumentaram em aproximadamente 11%, quase tanto quanto os estoques dos varejistas

(David J. Lynch, Washington Post) – Os armazéns na China e nos Estados Unidos estão repletos de televisores, geladeiras e sofás que não foram vendidos, um sinal compartilhado de recuperações diferentes da pandemia que podem anunciar uma pressão renovada nas cadeias de suprimentos globais e abalar a variedade de produtos nas lojas americanas.

As mercadorias estão se acumulando por diferentes razões em cada país. Nos EUA, os consumidores estão gastando mais em experiências pessoais, como refeições em restaurantes, do que com a acumulação de bens, como fizeram no ano passado, uma mudança que deixou os estoques do varejo em uma máxima histórica.

Já os estoques chineses estão aumentando como consequência da política de “tolerância zero contra a covid-19” do governo, que fez diminuir os gastos dos consumidores nos últimos meses, ao mesmo tempo que permitia a muitas fábricas continuar produzindo. Os estoques de produtos prontos para comercialização em abril equivaliam a mais de 21 dias de vendas pela primeira vez em pelo menos 12 anos, de acordo com a consultoria de pesquisa Capital Economics.

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Vender todas essas pilhas de mercadorias determinará as taxas de crescimento nas duas maiores economias do mundo. Os descontos necessários para queimar os estoques dos armazéns nos dois lados do Pacífico podem proporcionar aos consumidores americanos algumas pechinchas no varejo, apesar de os economistas dizerem que qualquer economia com sopradores de folhas e laptops terá pouco efeito para reduzir a taxa de inflação de 8,6%.

A confusão com os estoques é o mais recente capítulo no desempenho intermitente da economia global desde 2020.

“Nós temos mesmo uma economia global com velocidades diferentes hoje”, disse Gregory Daco, economista-chefe da Ernst & Young. “Há uma incompatibilidade de timing e um descompasso de demanda entre as mercadorias disponíveis e as mercadorias vendidas.”

A economia chinesa quase parou nesta primavera durante um lockdown na capital comercial da China, Xangai, com seus 26 milhões de habitantes; enquanto os EUA se recuperavam de um primeiro trimestre desanimador, com consumidores se apressando para retomar seus estilos de vida de antes da pandemia.

Depois de mais de dois anos tendo dificuldades para conseguir produtos suficientes para o país, muitas empresas americanas, do nada, se viram com excesso de alguns itens e estoque insuficiente de outros. A incoerência entre os armazéns transbordando de mercadorias e as mudanças nos gostos dos consumidores reflete o desafio enfrentado por muitas empresas, conforme a economia muda de maneiras imprevisíveis.

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Na segunda-feira, a inquietação com o que vem pela frente fez o índice S&P 500, o indicador mais amplo do mercado de ações, entrar em território de mercado de baixa, caindo mais de 20% este ano.

As pilhas de estoques surgem mesmo enquanto as complicações crônicas com o envio de mercadorias diminuem.

Em abril, as importações dos EUA caíram US$ 13 bilhões em comparação com os níveis de março, o que significou menor demanda por espaço a bordo de navios porta-contêineres. Desde 1º de maio, o custo com o envio de um contêiner padrão da China para a costa oeste dos EUA caiu 37%, de acordo com o índice Freightos. Na sexta-feira, 20 navios de carga estavam esperando para atracar ao longo da costa sul da Califórnia, ante o recorde de 109 embarcações em janeiro.

Embora haja pouca chance de uma repetição dos enormes engarrafamentos do ano passado, a recente melhoria talvez seja passageira. A China flexibilizou seu lockdown em Xangai no início de junho, o que poderia provocar um “efeito de ketchup”, conforme o porto congestionado libera subitamente navios com destino aos EUA, de acordo com a Windward, empresa de dados da cadeia de suprimentos.

O porto de Los Angeles também está se preparando para uma temporada de pico de transporte de mercadorias mais cedo que o habitual, já que os varejistas dos EUA mudaram o ritmo para atender aos pedidos do período de volta às aulas e de férias levando em consideração os gostos dos consumidores em rápida mudança.

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“A expectativa é que o congestionamento aumente outra vez. Estamos avisando aos nossos clientes. E estamos nos preparando para isso”, disse Brian Bourke, diretor de crescimento da Seko Logistics, em Chicago.

Os últimos lockdowns praticamente paralisaram grandes áreas da economia da China. Na prática, dezenas de milhões de consumidores chineses ficaram presos em casa e as empresas locais foram fechadas. No entanto, muitas fábricas continuaram funcionando ao obrigar os trabalhadores a permanecerem no local de trabalho 24 horas por dia, 7 dias por semana para diminuir os riscos de infecção.

À medida que a economia reabre, os consumidores chineses começarão a reduzir aos poucos as mercadorias acumuladas. Mas com a ameaça de novos lockdowns gerando dúvidas – Xangai e Pequim já receberam novas restrições – os gastos dos consumidores provavelmente continuarão fracos, disse Mark Williams, economista-chefe da Ásia para a Capital Economics.

Isso aumentará a oferta de bens de consumo disponíveis para os clientes dos EUA, colocando pressão sobre os preços dos produtos exportados.

“O principal impacto do enfraquecimento na China é que o país será uma considerável força desinflacionária para o resto do mundo”, disse Williams.

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Um excesso de produtos fabricados fora do país talvez já esteja contribuindo para os preços mais baixos de alguns produtos nos EUA. A rede de lojas de departamentos Burlington, que importa de fornecedores chineses e de outros países, disse que a disponibilidade de mercadorias com preços menores melhorou bastante.

“A situação mudou completamente. Há apenas alguns meses, muitos varejistas estavam trabalhando sem estoques. Seus armazéns estavam vazios, e eles estavam literalmente [operando] conforme a demanda, esperando que as mercadorias chegassem aos portos. Agora, alguns meses depois, os armazéns do país estão cheios”, disse o CEO Michael O’Sullivan. “E em muitos casos, eles estão recuando. (…) Conseguimos fazer alguns ótimos negócios.”

O’Sullivan disse que o aumento na oferta pode ter como causa outros varejistas estarem fazendo muitas encomendas ou a menor quantidade de contratempos nas cadeias de suprimentos. Ainda não está claro se os repetidos lockdowns da China com o passar do tempo levarão à escassez de produtos ou farão com que os varejistas façam pedidos para se precaverem, o que pode levar a novos excedentes, disse ele.

No geral, o dinheiro poupado com mercadorias com desconto provavelmente será usado para outras com preços em alta, principalmente com gasolina e aluguel, disseram economistas.

Depois de mais de dois anos de dores de cabeça crônicas nas cadeias de suprimentos, a gestão de estoques agora é o principal foco tanto para varejistas como para a indústria.

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Mark Mathews, vice-presidente de desenvolvimento de pesquisa da Federação Nacional de Varejo dos EUA (NRF, na sigla em inglês), disse que os estoques recordes do setor de US$ 696 bilhões continuam baixos em relação às vendas.

Entretanto, alguns varejistas, prejudicados no ano passado por problemas para conseguir produtos por meio dos portos lotados da costa oeste, fizeram grandes encomendas fora do comum este ano. Na Lands’ End, o estoque aumentou US$ 52 milhões no último trimestre, já que a empresa acelerou seus pedidos, “pois a cadeia de suprimentos tem estado muito instável”, disse o diretor financeiro Jim Gooch em uma divulgação de resultados neste mês.

Da mesma forma, na Kirkland’s, que vende itens de decoração para casa, o estoque no primeiro trimestre cresceu para quase US$ 131 milhões, um aumento de mais de 71% em relação ao ano anterior; pois os executivos importaram em 90 dias a maior parte do que esperavam vender no primeiro semestre do ano.

A empresa aproveitou uma linha de crédito de emergência de US$ 35 milhões para financiar as compras adiantadas. Com a expectativa dos estoques continuarem aumentando até agosto, a Kirkland’s está reduzindo os preços e cancelando ou postergando US$ 50 milhões em encomendas de produtos, como móveis, que não estão sendo vendidos.

“Essa situação com os estoques pegou muitos de nós desprevenidos”, disse o CEO Steve Woodward aos investidores no mês passado. “Acho que todo mundo está com estoques em excesso e não queria estar assim.”

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De fato, a Target está reduzindo os preços de móveis e eletrodomésticos para liberar espaço nos corredores das lojas para produtos relacionados a viagens, como malas, enquanto o Walmart baixou os preços de mais de 10 mil itens, inclusive de roupas.

Porém, ao mesmo tempo que os varejistas dos EUA se apressam para cancelar as encomendas de mercadorias que os consumidores não querem mais, eles estão tendo dificuldades para determinar quais produtos devem pôr em suas prateleiras. Os analistas devem lidar com a possibilidade de mais lockdowns na China, consequências da guerra na Ucrânia, inflação no maior nível em 40 anos e novas dificuldades no transporte de mercadorias.

“O problema é que a economia está mudando muito rapidamente”, disse David Page, chefe de pesquisa macroeconômica da AXA Investment Managers em Londres. “O intervalo maior entre o pedido e a entrega significa uma chance maior de a economia mudar – e a economia está mudando.”

As gigantes da indústria também estão sentindo a pressão. No ano passado, os estoques dos fabricantes aumentaram em aproximadamente 11%, quase tanto quanto os estoques dos varejistas.

O aumento dos estoques da indústria é consequência dos problemas de abastecimento, não da mudança de gostos. Em muitos casos, as fábricas têm a maioria das peças necessárias em mãos, mas não podem seguir adiante com a produção devido à falta de um componente fundamental.

Na fabricante de tratores John Deere, por exemplo, o estoque de mercadorias parcialmente finalizadas subiu para US$ 1,6 bilhão, ante US$ 967 milhões há um ano. Isso explica por que as lojas estão ficando sem os produtos da marca de que precisam.

A empresa espera entregar mais produtos do que o habitual nos próximos seis meses “enquanto trabalhamos com um acúmulo de mercadorias parcialmente finalizadas e esperamos pelo fornecimento de peças”, disse Rachel Bach, gerente de comunicação com os investidores da Deere.

Da mesma forma, a Eaton, que fabrica produtos para a indústria, inclusive componentes eletrônicos e sistemas de iluminação, informou o valor de US$ 783 milhões em produtos não finalizados, um aumento de quase 50% em relação a um ano atrás.

“Quando se está precisando de um pequeno componente, você tem um monte de pessoas em pé nas fábricas, sem poder finalizar a montagem”, disse Craig Arnold, CEO da Eaton. “Isso gera bastante falta de eficiência de materiais em sua operação.”

Se há algum lado positivo dos estoques em excesso da indústria, é que eles podem amortecer qualquer recessão. A grande quantidade de equipamentos de construção parcialmente finalizada da Deere que está parada, por exemplo, acabará sendo vendida, assim que as peças em falta surgirem.

Tradução de Romina Cácia.

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