- Uma crise que chegou sorrateira, se dissipou estranhamente e agora deixa uma “pulga atrás da orelha” dos investidores
- Ainda era domingo no ocidente quando, sem qualquer “aviso”, a Bolsa do Japão entrou em um declínio histórico
- Em um primeiro momento, as preocupações relacionadas a uma possível desaceleração econômica forte nos EUA foram apontadas como uma das causas da derrocada no Japão. Depois, o principal gatilho ficou mais claro. Entenda
Uma crise que chegou sorrateira, se dissipou estranhamente e agora deixa uma “pulga atrás da orelha” dos investidores. Ainda era domingo (4) no ocidente quando, sem qualquer “aviso”, a bolsa do Japão entrou em um declínio histórico. A desvalorização de 12,4% foi a maior desde 1987 e assustou os agentes financeiros, já abalados por dados de empregos nos Estados Unidos que vieram abaixo do esperado. O payroll, relatório de empregos americanos divulgado dois dias antes do “crash” japonês, alimentou as apostas em uma recessão na maior economia do mundo.
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Em um primeiro momento, as preocupações relacionadas a uma possível desaceleração econômica forte nos EUA foram apontadas como uma das causas da derrocada no Japão. Depois, o principal gatilho ficou mais claro: a subida de juros no país asiático, anunciada na última quarta-feira (31), estava provocando uma forte reversão de “carry trades”.
Carry trades são operações feitas por investidores institucionais, como fundos multimercados, cujos ganhos vêm do diferencial de juros entre diferentes mercados. Esses investidores pegavam dinheiro emprestado a juro “zero” no Japão e aplicavam o capital em outras economias com taxas mais altas. Isto após, claro, converterem o iene para a moeda do país de destino. A diferença entre a taxa japonesa, quase zerada, e o rendimento obtido em outro país, era o lucro.
No final, esses agentes “faziam dinheiro” sem efetivamente desembolsarem nada. O principal risco da operação era o câmbio – se o iene se valorizasse, os players poderiam ter perdas quando fossem devolver o dinheiro ao Japão.
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Contudo, depois que o banco central do Japão (BoJ) subiu o juro do intervalo entre 0% e 0,1% para 0,25% ao ano, esse tipo de transação deixou de fazer sentido para alguns investidores. Principalmente quando a expectativa era de queda mais brusca de juros nos EUA, um dos principais países-destino desses empréstimos, em função do temor de uma eventual recessão na maior economia do mundo.
Logo, o movimento de “reversão” de carry trades começou. Os investidores passaram a se desfazer das posições em outros países, principalmente em dólar, nos EUA, para devolver o mais rápido possível ao Japão, em iene – veja em detalhes o que aconteceu nesta reportagem. Essa liquidação derrubou as bolsas, já contaminadas pela aversão a risco em relação à desaceleração norte-americana, e fez o iene subir 2,1% em relação ao dólar somente na segunda-feira. Em três semanas, valorização da moeda japonesa atingiu 12%, já repercutindo a expectativa de juros mais altos no Japão.
O salto do iene prejudicou ainda mais os carry trades, já que diminuía ou até mesmo zerava os ganhos da operação. A bolsa de Tóquio também sofreu com o fortalecimento da moeda nacional, puxada pelas exportadoras do índice Nikkei, empresas com receita em dólar. Foi uma bola de neve que se formou longe do radar dos mercados, mas que atingiu em cheio os ativos globais. “Ninguém estava preocupado com o carry trade”, afirma Flávio Conde, analista da Levante Ideias de Investimento.
No dia seguinte, na terça (6), o cenário mudou bruscamente. O índice Nikkei subiu mais de 10% e as bolsas estrangeiras se recuperaram, como se o “caos” da véspera tivesse simplesmente se dissipado no ar – confira mais aqui.
Leonardo Trevisan, professor de Relações Internacional e especialista em economia global, aponta que as sinalizações posteriores de que o risco de recessão nos EUA era na verdade menor do que se inicialmente dimensionava ajudou a acalmar os ânimos. Do lado do Japão, o BoJ também apontou que só subiria o juro novamente quando os mercados se “acalmassem”. “Na prática, o que fez a bolsa do Japão cair em um dia e subir no outro foi a garantia de que as famosas operações de carry trade iam continuar”, afirma Trevisan. “O Japão é o maior território em que essa operação ocorre porque até o começo do ano os juros eram negativos.”
Contudo, as incertezas ficaram. Conde, da Levante, acredita que os investidores só terão a dimensão real dos impactos da reversão do carry trade nos próximos dias. “Alguns fundos multimercados, por exemplo, podem ter quebrado”, diz o analista.
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Victor Miziara, sócio da Performa Ideias, aponta que não é possível dimensionar o volume de dinheiro “artificial” que existe nesse mercado, advindo dos empréstimos feitos no Japão e aplicados em outros países. “Agora a conta está chegando e é essa grande preocupação do mercado. Qual o tamanho dessa liquidez falsa? Até quanto de dinheiro a gente pode ver sumindo do mundo?”, afirma Miziara. “Tem uma discussão no mercado se o movimento inicial de queda foi muito além, se foi exagerado, mas são coisas que só vamos conseguir nos próximos dias com a zeragem ou não desses carry trades.”
Japão entra no radar de risco dos mercados
Passada a maior queda desde 1987, na segunda-feira (5), seguida da maior alta desde 2008, no dia seguinte (6), a bolsa japonesa parece ter voltado a uma certa “normalidade”. A percepção é de que houve exageros – tanto na derrocada, quanto na recuperação. Para Paul Donovan, economista-chefe da UBS Global Wealth Management, é como se o mercado japonês estivesse operando descolado da realidade. “O mercado de ações japonês está se comportando com todo o decoro e racionalidade de alguém dançando Hokey Cokey (dança infantil) em um casamento de família às duas da manhã”, brinca Donovan.
William Castro Alves, estrategista-chefe da Avenue, também vê um comportamento errático. “Os mercados financeiros em geral, principalmente no curto prazo, funcionam como uma pessoa com bipolaridade, saem dos fundamentos, são movimentos exagerados”, diz. “Mas fica difícil estimar quanto o carry trade representa de dinheiro no mundo.”
De qualquer forma, o Japão entra no radar de riscos do mercado. O país viveu por pelo menos 17 anos com uma taxa de juros praticamente zerada ou negativa (quando em vez de receber rendimentos, os poupadores têm que pagar juros para manter o capital) e agora os agentes financeiros precisarão se adaptar a uma realidade de dinheiro “mais caro”.
Por que os juros do Japão são tão baixos
O motivo de o país ter mantido por tanto tempo um juro nulo ou negativo decorre do fato de que os japoneses, historicamente, possuem problemas de “deflação”. Isto significa que o mercado consumidor é tradicionalmente pouco aquecido, com baixa demanda, a ponto de ter “inflação negativa”. A população culturalmente gasta pouco e até os mais idosos têm tendência a poupar. “O Japão é uma economia ‘estranha’, um caso peculiar no mundo. Não dá para a tentar entender o país com as mesmas regras que você entende as outras economias”, afirma Trevisan.
Logo, os juros nulos funcionavam como uma tentativa de estimular a economia japonesa, que também sofre com o envelhecimento da população. “O país tem crescimento vegetativo negativo há décadas, ou seja, morre mais gente do que nasce. O governo já fez diferentes tentativas de convencer os casais a terem filhos, todas inúteis”, diz Trevisan. “E apesar de ter crescimento vegetativo negativo, a política de proteção à imigração segue brutal.”
Pedro Brites, professor da Escola de Relações Internacionais da FGV, corrobora essa análise. Ele aponta o Japão como uma economia com “poucos recursos” para propiciar um salto econômico – o que torna a situação atual ainda mais peculiar. Em 2024, apesar da retração econômica de 0,5% do Produto Interno Bruto (PIB) durante o primeiro trimestre, os preços “finalmente” começaram a subir. Até maio, a inflação acumulava variação positiva de 2,8% no ano.
Essa inflação adicional, desejada há décadas, veio do crescimento das exportações japonesas atreladas à China e também da valorização do dólar no início do ano. Fatores cuja perenidade ainda não está totalmente dimensionada. A dúvida, agora, é o que será do Japão daqui para a frente. “É uma economia que não tem um dinamismo próprio”, diz Brites.
Uma nova era para a economia japonesa?
O docente explica que o país vem enfrentado, por exemplo, uma crise no setor automotivo. Algumas empresas tradicionais, como a Toyota, foram acusadas de cometerem erros em testes de veículos e tiveram as produções paralisadas temporariamente. “Tudo isso gera uma certa desconfiança mais profunda sobre a economia japonesa, que acabou culminando na queda da última segunda-feira. A derrocada pode ser um sintoma de um processo mais amplo no Japão”, diz.
Essa também é a visão de Trevisan, da ESPM. “Não se tem certeza se teremos um 'pouso forçado' (forte desaceleração econômica) nos Estados Unidos. Se tivermos, as operações de carry trade no Japão param. Se param essas operações, haverá forte impacto no iene e no dólar. Vai ser uma situação nova.”
Já para Marcos Weigt, head de Tesouraria do Travelex Bank, as chances de o Japão acelerar na alta de juros beira à mínima. “O Japão está desde 1984 com a inflação rodando ao redor de zero e em muitos momentos negativa. Então, acho muito difícil eles quererem cortar esse processo abruptamente, agora que a inflação voltou. Ainda mais com a perspectiva dos Estados Unidos desacelerarem um pouco mais do que o esperado, com corte de juros em setembro”, diz, sobre o gatilho que levou a bolsa do Japão ao caos nesta semana.
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