O que este conteúdo fez por você?
- Gustavo Carvalho é um dos muitos investidores que sofreram prejuízos após descoberta de fraude no IRB, em 2020
- Agora, Carvalho tenta conseguir uma indenização por meio da Ação Civil Pública (ACP) movida pelo Ibraci. Outros institutos como IPGE e Instituto Empresa também possuem processos contra a empresa
- Entretanto, o direito de investidores à indenização não é algo bem consolidado no Brasil e resultado dessas ações, seja pela justiça comum ou arbitral, é incerto. Procurado, o IRB não respondeu às solicitações do E-Investidor até a publicação desta reportagem
- Questionada, a B3 diz que criou a Câmara do Mercado para que companhias listadas nos segmentos especiais pudessem resolver eventuais litígios societários em um foro arbitral especializado
O IRB (IRBR3) apresentou suas demonstrações contábeis individuais referentes a 2023 na última sexta-feira (1). Quatro anos após a descoberta de fraudes, a empresa ensaia uma recuperação – o ressegurador reportou lucro de R$ 114,2 milhões no acumulado do ano passado, revertendo o prejuízo de R$ 630,3 milhões no exercício anterior.
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A virada veio tarde para o empresário Gustavo Carvalho, de 62 anos. Em janeiro de 2020, ele possuía R$ 450 mil investidos em IRBR3, cerca de um terço do seu patrimônio. “Eu considerava como o dinheiro da minha aposentadoria”, diz. Hoje, o montante vale cerca de R$ 20 mil após as quedas, aumento de capital e grupamento.
“Eu não quero mais saber de Bolsa de Valores. Não existe segurança alguma para proteger o pequeno investidor”, diz o empresário.
Uma volta ao passado
A gestora Squadra identificou, em fevereiro de 2020, inconsistências contábeis em relatórios apresentados pela companhia, que resultavam em lucros inflados por ganhos não recorrentes. No mês seguinte, Warren Buffett desmentiu o investimento na empresa – notícia que tinha sido circulada na imprensa.
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No final, uma nova diretoria assumiu o ressegurador e as investigações conduzidas pela própria empresa comprovaram a fraude, relatada nos comentários do balanço contábil do primeiro trimestre de 2020. Como resultado das manipulações contábeis, os números dos balanços de 2018 e 2019 precisaram ser revistos e o IRB iniciou uma reestruturação. Procurado, o IRB não respondeu às solicitações do E-Investidor até a publicação desta reportagem.
“Verificou-se que ex-diretores e outros colaboradores da companhia praticaram irregularidades que culminaram na modificação intencional e sistêmica de dados operacionais”, apontou a administração do ressegurador, em junho de 2020. “As contabilizações indevidas representaram um impacto no lucro líquido da Companhia para 2019 de R$ 553,4 milhões e de R$ 117,2 milhões em 2018.”
Entre 2020 e 2022, a IRBR3 acumulou desvalorização de mais de 97% na Bolsa.
A empresa é vítima. Investidores, não
Em busca de alguma justiça, o empresário Carvalho foi um dos 454 investidores que optaram por ingressar, entre janeiro e fevereiro deste ano, em uma ação civil pública (ACP) movida pelo Instituto Brasileiro de Cidadania (Ibraci) contra o IRB. A ACP, ajuizada em setembro de 2022, busca responsabilizar o ressegurador pelos graves prejuízos causados aos acionistas devido às fraudes.
“Deve haver indenização quanto ao valor efetivamente perdido com juros e correção, além de uma compensação pecuniária a título de dano moral punitivo, pedagógico e educativo”, afirma Gabriel de Britto, diretor jurídico do Ibraci.
Apesar de ser claro que houve irregularidades contábeis, a conclusão de um processo como esse está longe de ser óbvia. Principalmente no Brasil, em que existem entendimentos jurídicos distintos em relação aos direitos dos acionistas e a quem deve ser atribuída a responsabilidade por infrações cometidas dentro de companhias abertas.
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Nelson Eizirik, professor da FGV Direito Rio, aponta que há uma grande corrente de pensamento jurídico no sentido de que companhias não devem ser responsabilizadas por atos de seus administradores, por exemplo. Ou seja, não seria o IRB a ser condenado a indenizar os investidores, mas os executivos que praticaram as fraudes.
Além disso, há dúvidas se os investidores poderiam pedir tal ressarcimento. “Em muitas ações judiciais, os acionistas alegam que tiveram prejuízos na Bolsa, porque os atos dos administradores fizeram com que a cotação das ações desabasse”, diz Eizirik. “Só que tem jurisprudência judicial dizendo que esse tipo de dano é um dano indireto e, consequentemente, os acionistas não têm direito de pleiteá-los.”
No processo movido pela Ibraci, o IRB se defende dizendo ser um dos lesados pelas fraudes. “O IRB alega que a demanda deve ser movida perante os ex-diretores, que não há direito coletivo tutelável, que já existe arbitragem contra os ex-administradores e que é tão vítima das ilegalidades apontadas quanto os investidores”, diz Britto, que aponta que não há ainda perspectivas de desfecho do processo movido pelo Ibraci.
Gabriel Zugman, sócio do Domingues Advogados, explica que esse entendimento é baseado em legislações antiquadas: a Lei das Sociedades Anônimas e a Lei do Mercado de Capitais, ambas de 1976.
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“Nenhuma delas traz essa possibilidade de responsabilizar a pessoa jurídica. Por incrível que pareça, a possibilidade de indenização a investidores não está clara na legislação”, diz Zugman. “Essa omissão legal criou uma visão peculiar de alguns juristas brasileiros no sentido de que a pessoa jurídica é sempre vítima de seus administradores e controladores, nunca se responsabilizando a companhia perante os investidores. E quem paga o pato por isso? Os investidores.”
O entendimento pode explicar o escasso histórico de sucesso de ações civis públicas movidas por investidores contra companhias abertas na via judicial comum. No Brasil, ainda não se tem notícia de um caso tão grande, quanto IRB ou Americanas, em que houve ACP com decisão satisfatória. “As ações civis públicas perante o Poder Judiciário são raras, ante a falta de criação de uma cultura e de conhecimento dos investidores quanto ao direito que têm de serem reparados por danos sofridos junto ao mercado acionário. Logo, não há jurisprudência consolidada quanto ao tema”, diz Britto, do Ibraci.
Os relatos mais recentes de sucesso são de indenizações individuais de investidores, não ações públicas. Um desses episódios ocorreu em 2018, quando a auditoria KPMG foi condenada a ressarcir os prejuízos de um investidor do antigo Banco BVA. A justiça entendeu que a KPMG, responsável por auditar as contas do BVA entre 2007 e 2012, omitiu indícios de fraudes na instituição financeira. O BVA teve sua falência decretada em 2014.
“O Banco Central entendeu que os auditores tinham indícios suficientes da existência de fraude e que, além de deixar de comunicar o fato à Autoridade Monetária, conforme exige a Resolução 3.198, não modificaram sua opinião sobre as demonstrações financeiras do banco auditado”, diz trecho do acordão do processo.
Ganha, mas não leva
Há uma outra Ação Civil Pública contra o IRB correndo na justiça, só que de autoria do Instituto de Proteção e Gestão do empreendedorismo e das relações de consumo (IPGE). Esse processo corre em segredo de justiça desde o início do ano passado e, apesar de se tratar do mesmo tipo de ação, possui uma abordagem diferente.
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Diego Carvalho, sócio do Carvalho e Metzker Advogados, atua na ACP movida pelo IPGE. Ele explica que, apesar da Lei das SAs e do Mercado de Capitais não prever a responsabilidade das companhias por atos ilícitos de seus administrador, o Código Civil permite essa correlação. Ou seja, de que a pessoa jurídica deve responder por atos ilícitos de seus funcionários.
Ele explica ainda que, diferentemente do Ibraci, o processo não busca responsabilizar apenas a empresa pelos danos, mas a todos os agentes relacionados à companhia enquanto os ilícitos aconteciam – administradores e controladores, como as instituições financeiras BB Seguros, Itaú e Bradesco.
A abrangência dos responsabilizados é para afastar ao máximo o “ganha, mas não leva”. Ou seja, de que mesmo que o juiz considere o IRB responsável, e não vítima das fraudes, a indenização não ocorra aos investidores por falta de capital disponível. “Acredito que todos eles serão, de forma solidária, condenados e responsabilizados a reparar os prejuízos dos investidores”, diz Carvalho.
A cláusula polêmica
Fora todos os imbróglios que envolvem os processos de investidores contra companhias abertas, ainda há uma terceira fonte de dúvidas. O IRB e muitas empresas listadas em Bolsa, como a Americanas, possuem uma cláusula dentro do Estatuto Social que versa sobre como devem ser resolvidas “controvérsias” entre a empresa, acionistas, administradores e conselheiros.
Essa cláusula aponta para uma única via de resolução: em vez da justiça comum, esses conflitos devem, em tese, ser resolvidos por arbitragem. Câmaras de arbitragem são ambientes específicos para tratar de conflitos relacionados a empresas de capital aberto. Segundo Eizirik, da FGV Direito Rio, o fato de o IRB expressar essa via judicial faz com que as ações abertas na justiça comum, como as do Ibraci e do IPGE, corram o risco de ser extintas sem o julgamento do mérito.
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Tanto Ibraci, quanto o IPGE, entraram com pedidos para anular essa cláusula, que consideram abusiva. No processo movido pelo Ibraci, o juiz ainda não acatou o pedido. No caso do IPGE, como a ACP corre em segredo de justiça, não há acesso às decisões. “Não posso falar nada acerca do andamento processual”, ressalta Carvalho, sócio do Carvalho e Metzker Advogados.
Grasiele Roque da Silva, do Benício Advogados, aponta que não há decisões uníssonas sobre a nulidade da cláusula de arbitragem em situações de fraude. “Existem entendimentos para as duas situações, e dependerá do juízo que avaliar a medida judicial decidir, ainda que conste essa previsão de cláusula arbitral no estatuto”, diz.
Custos elevados
Apesar de na arbitragem a velocidade do processo ser muito maior, em um ambiente especializado, os custos são muito elevados e podem inviabilizar que pequenos investidores consigam, sequer, reivindicar seus direitos.
Na Câmara de Arbitragem de Mercado (CAM), indicada pelo IRB para resolução dos conflitos, por exemplo, somente a taxa de administração mensal possui valor mínimo de R$ 1 mil para demandas de até R$ 100 mil. A remuneração dos “árbitros” não sai por menos de R$ 1,2 mil por hora trabalhada, e dos membros do “Comitê de Impugnação”, R$ 15 mil.
Já na justiça comum o processo é moroso, e muito menos custoso também. Em ações coletivas ou ações públicas, por exemplo, o investidor geralmente não precisa desembolsar nenhum valor. Contudo, em caso de sucesso, os advogados ficam com uma taxa da indenização obtida.
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“Todas as sociedades com ações listadas em bolsa, em seu estatuto preveem arbitragem e só com a Câmara de Arbitragem do Mercado da B3. Ou seja, os propagadores do livre mercado, concorrência e da liberdade econômica fazem com que exista um claro e nefasto monopólio, violador ainda do princípio do acesso à justiça quanto aos acionistas”, argumenta o Ibraci, no pedido para anulação da cláusula.
Questionada, a B3 diz que criou a Câmara do Mercado para que companhias listadas nos segmentos especiais pudessem resolver eventuais litígios societários em um foro arbitral especializado. Também destacou que as câmaras arbitrais oferecem um ambiente independente, sigiloso e eficiente para a solução de controvérsias.
“Destaque-se que o papel da Câmara é atuar na administração de procedimentos arbitrais originários de conflitos surgidos no âmbito das companhias que se comprometeram com a adoção de práticas adicionais de governança corporativa e transparência, cujas ações são listadas nos segmentos especiais da B3″ afirma a B3, em nota enviada ao E-Investidor.
Uma alternativa que pode ser utilizada por investidores para conseguir participar de processos em câmaras de arbitragem é procurar fundos que financiem esses processos. Em resumo, esses fundos de investimento arcam com os custos da arbitragem, mas, em caso de sucesso, ficam com um percentual das indenizações. Em caso de fracasso o investidor pode, ou não, ter que pagar os advogados da outra parte.
O Instituto Empresa é uma das principais instituições que movem processos de arbitragem contra companhias abertas. O IE já tem um processo contra o IRB e, em outubro de 2022, representava mais de 400 investidores. Também há procedimentos contra a Americanas, contudo, não há acesso aos andamentos processuais.
O motivo é de que os acordos em Câmaras de Arbitragem geralmente definem o sigilo dos andamentos processuais e até mesmo das decisões, mesmo se tratando de companhias de capital aberto. A necessidade do sigilo, entretanto, não está prevista em lei.
“Em arbitragem, há poucas decisões, mas são decisões contraditórias. Algumas admitem a responsabilidade da companhia e outras não. As grandes ações são propostas em arbitragem e não na justiça comum”, afirma Eizirik. “Nos casos em que foi decidido que a empresa é responsável, ainda não houve indenização.”
Tendência a mudanças
No Brasil, algumas discussões sobre mudanças na legislação estão em curso. No ano passado, o projeto de Lei 2925/2023 propôs aumentar os poderes da Comissão de Valores Mobiliários (CVM) para que o xerife do mercado financeiro possa inspecionar escritórios, por exemplo, e requerer ao Poder Judiciário, mandatos de busca e apreensão.
Em relação ao direito dos acionistas, o PL institui que os processos de arbitragem sejam públicos, para que todos tenham acesso às informações de forma simétrica. Também regulamenta a possibilidade de ações coletivas similares às class actions – ou seja, uma decisão positiva, por exemplo, poderá ser estendida a todos os investidores nas mesmas condições.
“A principal diferença entre as class actions e as ações civis públicas no Brasil é que nas class actions americanas, uma das vitimas pode ser a representante do grupo de vitimas lesadas (autor da ação). No Brasil, as Ações Civis Públicas só podem ser propostas pelos legitimados previstos em lei – as associações civis, como o IPGE”, diz Carvalho, sócio do Carvalho e Metzker Advogado.
Contudo, delimita os investidores que poderiam reivindicar indenizações a aqueles que tenham pelo menos 2,5% do capital social ou valor igual ou superior a R$ 50 milhões. Entre os advogados, a iniciativa teve visão agridoce. Zugman vê a publicidade das arbitragens como um ponto bastante positivo, já que, para ele, não faz sentido companhias abertas com milhares de investidores deixarem ações judiciais contra a companhia como sigilosas. Por outro lado, o PL falharia ao endossar a visão de que a companhia é sempre vítima, ao apenas prever que administradores e acionistas controladores possam ser acionados por investidores.
“Ao insistir nesse erro, as ações coletivas de investidores podem ser inócuas porque é improvável que os administradores e controladores detenham patrimônio necessário a indenizar”, afirma Zugman. Silva, do Ibraci, vê o PL como positivo, mas espera que essa necessidade de grande capital para pleitear indenização seja revisto.
Já o Instituto Empresa vê com preocupação um eventual avanço desse projeto, se mantidos esses termos. “Ainda que vendido com o selo de ‘proteção aos minoritários’, suas disposições são redutoras das possibilidades atuais e potencialmente diminuirão as alternativas de os minoritários exercerem reclamações. Do ponto de vista substancial, as Companhias são só seriam responsáveis quando emitem os papeis (IPOs ou OPA) e não das transações subsequentes (como no caso Americanas); no aspecto processual, criam dificuldades e empecilhos aos minoritários, concentrando as ações coletivas”, afirma o IE, em nota enviada ao E-Investidor.
Muito mais fácil para os americanos
De fato, a situação dos pequenos investidores brasileiros é bastante desfavorável em relação a investidores de outros mercados, como o norte-americano. Eizirik explica que, nos EUA, não há a via de arbitragem e todas as demandas são resolvidas na justiça comum, por meio das “class actions”, ações coletivas movidas por investidores.
Também é consolidada a visão de que a companhia é responsável pelos atos praticados por seus administradores, assim como a possibilidade de indenização por eventuais prejuízos. O professor, que é referência no País em arbitragem e direito societário, aponta que, na maioria dos casos, as companhias fazem acordos com os investidores e pagam de 10% a 20% do valor pedido pelos acionistas.
“A companhia sabe que, se ela perder, vai ter que pagar uma indenização bilionária”, diz o docente. Contudo, tamanha facilidade fez nascer uma espécie de “indústria dos processos”. “Tem uma discussão muito grande no exterior de quem vai representar esses acionistas. Os advogados ficam brigando para ver qual é o escritório que vai representar todos os acionistas.”
Zugman, sócio do Domingues Advogados, também endossa essa situação e vê uma necessidade de atualizar a legislação brasileira para algo próximo ao que se pratica nos EUA e Europa. “Lá não há toda essa discussão verborrágica que temos por aqui de dano direto e indireto e nem esse discurso vitimista por parte das empresas jogando o pepino para controladores e administradores”, afirma.
A própria Petrobras, em 2018, fez acordo de US$ 2,9 bilhões com investidores nos EUA para encerrar o uma ação coletiva contra a companhia. Os investidores buscavam ressarcimento de prejuízos decorrentes da desvalorização dos papéis após descoberta de esquema de corrupção na companhia, no âmbito da Operação Lava-Jato. “Mas aqui no Brasil insiste na tese de ser vítima”, afirma Zugman.
Enquanto os imbróglios jurídicos não são resolvidos, investidores como Gustavo Carvalho seguem em busca de justiça, mas desesperançosos. “Parece que esses fraudadores estão bem confiantes, enquanto que os investidores estão amargando seus prejuízos”, diz o investidor.