- O mercado de ações parece apostar tudo na ideia de que o Fed manterá sob controle a extremidade distante da curva de juros nos EUA
- Uma forma alternativa de medir o poder de atração das ações em relação às obrigações é analisar como os dois mercados tratam a mesma empresa, algo que incorpora à equação o risco de crédito
(Brian Chappatta*/Opinião Bloomberg) – As animadoras de torcida do mercado acionário estão finalmente colocando o ganho interminável nos preços dos papéis em termos que os investidores em obrigações podem compreender.
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Cada vez mais, investidores e analistas estão justificando os recordes nos índices S&P 500 e Nasdaq 100 (voltado para o mercado da tecnologia) no contexto das taxas de juros, que costumam ser o domínio dos negociantes de obrigações.
Estrategistas da Bank of America Corp. atribuíram cerca de 16% do notável desempenho das ações de tecnologia nos anos mais recentes à queda no rendimento das obrigações; trata-se de um recorde, um nível mais de duas vezes superior ao observado antes da crise financeira de 2008. O ganho de rendimento no S&P 500 e na Nasdaq 100, que mede o lucro em relação ao valor da ação, pode estar no patamar mais baixo já visto desde o início da década de 2000, mas ainda está 296 pontos-base e 184 pontos-base acima do rendimento de um título padrão de 10 anos do tesouro americano, respectivamente.
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Até os dividend yields [rendimento de dividendo] de 12 meses parecem interessantes: 1,69% no S&P 500 e 0,71% na Nasdaq 100, comparáveis a 0,65% para a nota do tesouro com vencimento em 10 anos. E não estamos falando de números distorcidos por um punhado de empresas: cerca de 78% das ações individuais do S&P 500 têm dividend yield superior ao título de 10 anos do tesouro americano, a maior proporção já vista, que se manteve em média na casa de 25% nas duas décadas mais recentes, de acordo com Russ Certo, da Brean Capital.
Tudo isso quer dizer: sob muitos aspectos, ainda podemos alegar que as ações estão baratas. Mas somente se acreditarmos que o Federal Reserve (Fed) vai manter a curva de juros sob rigoroso controle.
No dia 6 de agosto, o rendimento dos títulos do tesouro com vencimento em 10 anos caiu para apenas 0,5%. Três semanas mais tarde, o rendimento chegou a 0,79% – ainda baixo em termos históricos, mas subitamente mais alto do que o dividend yield da Nasdaq 100, com a maior diferença vista desde o início da pandemia do coronavírus nos Estados Unidos. O único momento em que essa relação se inverteu foi no início de junho, quando o rendimento dos títulos de 10 anos do tesouro se aproximou de 1%. Depois disso, as ações tiveram venda rápida e os rendimentos voltaram ao normal.
Esse precedente foi o suficiente para deixar nervosos os estrategistas do JPMorgan Chase & Co. “Com a extremidade mais distante da curva ameaçando uma confluência de sinais-limites de uma alta nos rendimentos, a contínua fraqueza dos preços tem o potencial de desencadear outro fluxo de pressão de venda com base no embalo”, disse Peng Cheng, estrategista global quantitativo e de derivativos do JPMorgan. Ven Ram, da Bloomberg News, escreveu que “O rendimento do tesouro se tornará uma dor de cabeça para as ações perto de 1%”.
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Mas, dessa vez, o rendimento dos títulos americanos caiu para seu patamar habitual enquanto o mercado de ações seguiu se valorizando sem ser afetado. O que houve?
O Fed entregou seus planos.
As provas disso estão no movimento das letras do tesouro com vencimento em 10 anos observado no dia 1º de setembro, cujo rendimento era de 0,73% às 10h30 da manhã em Nova York e caiu para 0,67% já às 15h. Não tivemos más notícias econômicas; na verdade, dados do Instituto para a Gestão do Fornecimento mostraram que as manufaturas se expandiram nos EUA em agosto ao ritmo mais rápido desde o fim de 2018. Não foi exatamente um dia de aversão ao risco, com o S&P 500 avançando 0,75% e o índice Bloomberg Barclays para obrigações de alto rendimento registrando alta pelo oitavo pregão seguido.
Em vez disso, foi tudo um eco do banco central. Primeiro, o Fed comprou US$ 1,73 bilhão em obrigações do tesouro de 20 a 30 anos em sua operação diária de compra, imediatamente empurrando para baixo os rendimentos de prazo mais longo. Então, a diretora do Fed, Lael Brainard, debateu a nova política do banco central, após palestras do presidente do conselho, Jerome Powell, e do vice-presidente, Richard Clarida.
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“Nos próximos meses, será importante que a política monetária avance da estabilização para a acomodação”, disse Lael. “Ainda que a comissão não tenha previsto o desafio sem precedentes da pandemia da covid-19 quando a análise foi lançada, a nova declaração nos coloca em posição mais forte para dar sustento a uma recuperação completa e oportuna.”
Obviamente, trata-se de uma defesa de uma forma explícita de forward guidance [orientação a termo] que vincula altas futuras nas taxas de juros à inflação real que exceder a meta do banco central, de 2%. Mas o gesto também pode ser visto como prenúncio de uma rodada mais tática de afrouxamento quantitativo, talvez nos mesmos moldes da Operação Twist, em 2011. Afinal, na época, a descrição oficial do Fed para o programa dizia que seu objetivo seria “exercer pressão descendente nos juros de prazo mais longo para tornar mais receptivas as condições financeiras em geral.”
Um dos pontos finais de intriga que restaram entre os observadores do Fed é a reação das autoridades a uma alta no rendimento de longo prazo dos títulos do tesouro. No geral, tendo a acreditar que os administradores do banco central tolerariam uma curva de rendimentos um pouco mais acentuada se esta ocorresse pelos “motivos certos”, como uma retomada da inflação ou sinais de uma recuperação econômica mais robusta. Isto certamente representaria um alívio para a indústria bancária. Mas, como disse meu colega da Bloomberg, Tim Duy, Powell e seus colegas também têm implorado ao congresso americano por estímulo fiscal adicional para sustentar a economia, e o baixíssimo custo do crédito torna essa proposta mais fácil de vender no capitólio. Dito isso, se o baixo rendimento dos títulos do tesouro está impulsionando o mercado de ações até patamares recordes, diminuindo assim a urgência da aprovação de mais estímulo aos olhos dos legisladores, prejudicando assim a recuperação econômica, isso nos devolve ao início de tudo. A impressão é a de estarmos andando em círculos.
Uma forma alternativa de medir o poder de atração das ações em relação às obrigações é analisar como os dois mercados tratam a mesma empresa, algo que incorpora à equação o risco de crédito. Pensemos no exemplo perfeito de empresa gigante de tecnologia com preço inflado: a Apple Inc. Ainda que o preço de suas ações tenha aumentado mais de 100% nos seis meses mais recentes, sua valorização não parece exagerada no contexto da renda fixa. A fabricante do iPhone emitiu no mês passado valores mobiliários com vencimento em cinco anos que pagam juros de 0,55%, muito abaixo do atual ganho de rendimento de 2,45% e, por incrível que pareça, abaixo até do dividend yield de 0,6%.
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Ora, não se trata de um cálculo tão simples assim. Se a Apple vai pagar aos detentores de suas obrigações seu investimento inicial no momento de maturidade, suas ações não oferecem a mesma promessa. Em tese, a empresa pode tropeçar, deixando os investidores com pesadas perdas. O rendimento de uma obrigação é um retorno nominal garantido se o valor mobiliário for mantido até a maturidade (desconsideradas as moratórias). O ganho de rendimento de uma ação é apenas o inverso da proporção entre preço e rendimento. Os dividendos também podem aumentar ou cair rapidamente – globalmente, os rendimentos tiveram no segundo trimestre a maior queda desde 2009.
Independentemente disso, o mercado de ações parece apostar tudo na ideia de que o Fed manterá sob controle a extremidade distante da curva de juros nos EUA. As jogadas dessa semana “podem ser atribuídas à fé do mercado na ideia de que o Fed não hesitará em oferecer novas acomodações agressivamente”, escreveram os estrategistas Ian Lyngen, Jon Hill e Ben Jeffery, da BMO Capital Markets. “O espaço para uma queda nos ativos mais arriscados é limitado no prazo mais curto.”
Em outras palavras, tudo se resume aos rendimentos. E, desse ponto de vista, mesmo depois dessa valorização sem precedentes, as ações ainda são melhor negócio do que as obrigações. E isso não deve se alterar até que o Fed decrete uma mudança.
(Tradução de Augusto Calil)
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*Chappatta é colunista da Bloomberg Opinion e cobre os mercados de dívidas. Ele já cobriu o setor de obrigações para a Bloomberg News. É também um analista financeiro credenciado.