- O Código Civil exige que 50% do patrimônio seja dividido entre herdeiros necessários; o restante pode ser destinado conforme o desejo do testador
- A anulação é possível se o testamento desrespeitar a legítima ou se houver alegações de incapacidade ou vícios de vontade
- A renúncia é irrevogável e implica redistribuição da parte renunciada entre os demais herdeiros
Sem falar com o pai há quase duas décadas e manter uma relação conturbada com os dois irmãos, a professora universitária Clarice Rosa, de 52 anos, descobriu, por um vizinho, que seu genitor morreu. Na lista de bens deixados por ele, Rosa conta dois carros, um apartamento, a casa em que ele morava na zona Oeste de São Paulo e imóveis para locação por temporada no litoral paulista, além de quadros valiosos. Como o patrimônio também pertencia à sua mãe, que morreu em 2010, a professora fez questão da sua parte na herança. Convicta de que teria direito, ela diz que tomou um susto: no meio da papelada, seu nome não constava como umas das beneficiadas na divisão de bens. Foi excluído pelo pai.
A ajuda de advogados foi importante para o primeiro passo que Rosa deu após o dissabor. De acordo com o Código Civil, uma pessoa pode destinar metade do seu patrimônio por meio de testamento a quem desejar. No entanto, os outros 50% devem ser obrigatoriamente divididos entre os herdeiros necessários, que incluem filhos, pais e cônjuge ou companheiro, chamados de legítima; ou seja, não é possível deixar toda a herança para um único filho ou excluir um deles.
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“Outro dia, ao me ouvirem dizer que não existe herança de pessoa viva, alguém me perguntou se então poderia doar todo o seu patrimônio para um dos filhos. A resposta é não. Doação de autor de herança para herdeiro tem implicações legais, de modo que a lei limita certas transações”, diz a advogada de direito cível, das famílias e das sucessões, Maria Fernanda Ávila. “A doação de uma parte do patrimônio de um pai a um filho é possível, mas pode caracterizar antecipação de legítima. A doação da integralidade do patrimônio de um pai para o filho corresponde ao que chamamos de doação inoficiosa, vedada pelo nosso ordenamento jurídico, podendo vir a ser contestada”, acrescenta a advogada.
Foi o caso de Clarice Rosa, que precisou de intervenção jurídica para anular o testamento. “Me xingaram [os irmãos], me chamaram de interesseira, me disseram que iriam recorrer até o fim pra que eu não ficasse com aquilo que também é direito meu”, começa. “Foi muito cansativo para mim. Eu dividia meu tempo entre brigas, trabalho, saúde debilitada e essa ação. Penso que tudo deveria ter sido prático e justo, mas acho que foi uma vingança, um descaso da minha família”, finaliza.
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Segundo Ávila, anular um testamento só é possível quando há alegação de incapacidade do autor da herança quando realizou o testamento, seguido da alegação de ocorrência de algum vício de vontade (principalmente coação ou erro), e, no caso de testamentos mais antigos, a não observância das disposições legais acerca de questões formais. Um testamento também pode ser contestado se não observar a reserva legal da legítima.
Como anular um testamento por desrespeito à legítima?
Para anular um testamento que desrespeita a legítima, especialistas aconselham obter uma cópia do testamento, seja ele público, cerrado ou particular — o que pode ser feito entrando em contato com o cartório onde foi registrado — e consultar um advogado especializado em direito sucessório para revisar o conteúdo do testamento e verificar se houve desrespeito à legítima, que corresponde a 50% do patrimônio destinado aos herdeiros necessários.
Em seguida, é importante reunir todos os documentos que comprovem a condição de herdeiro necessário, como certidões de nascimento, casamento, ou outros documentos relevantes, além de provas que possam demonstrar o valor dos bens e a proporção destinada no testamento. Caso haja indícios de que o testador estava sob influência indevida ou incapaz de compreender seus atos ao redigir o testamento, essas provas também devem ser reunidas.
O próximo passo, conforme o advogado especialista em direito de família e sucessões, Gabriel Andrade, é entrar com uma ação de anulação de testamento, que deve ser movida no fórum do local onde o testador residia ou onde está sendo processado o inventário. “É preciso respeitar os prazos legais, que normalmente são de cinco anos a partir da abertura do testamento ou da descoberta de fatos que justifiquem a anulação”, afirma.
Durante o processo, segundo Andrade, o advogado deve fundamentar a ação, argumentando que o testamento desrespeita a legítima e, portanto, deve ser anulado total ou parcialmente. “Com as provas, a pessoa está mais preparada para contestar possíveis defesas dos beneficiários do testamento. O processo pode incluir audiências e perícias para avaliar o estado mental do testador no momento da elaboração do testamento”, pontua.
Após o julgamento, o juiz profere uma sentença que pode anular o testamento total ou parcialmente, garantindo o cumprimento da legítima. Se a decisão for favorável, a sentença deve determinar como os bens devem ser redistribuídos, respeitando os direitos dos herdeiros necessários, e o inventário será ajustado para refletir essa nova divisão. A decisão judicial, de acordo com o advogado, deve ser registrada no cartório onde o testamento foi arquivado, e o inventário será atualizado conforme a nova determinação, garantindo uma distribuição justa dos bens.
E se um dos herdeiros renunciar à herança?
Quando um herdeiro opta por renunciar à sua parte dos bens deixados por quem morreu, a decisão se torna irrevogável, ou seja, uma vez realizada, o herdeiro não pode voltar atrás e reivindicar sua parte.
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“Na prática, essa pessoa simplesmente sai do rol de herdeiros como se nunca tivesse feito parte dele. Assim, o patrimônio será dividido entre os demais herdeiros na forma da lei. Isso é o que configura a renúncia propriamente dita. Se a ideia é que a herança recaia em favor de um único herdeiro, todos os demais teriam que renunciar à sua parte para que restasse apenas um”, analisa a advogada de direito cível, das famílias e das sucessões, Maria Fernanda Ávila.
Outro aspecto importante é que a renúncia impede que o herdeiro renunciante seja representado por seus descendentes, como filhos ou netos, na sucessão. Isso significa que a parte renunciada não será transmitida automaticamente para os descendentes do renunciante, mas, sim, redistribuída entre os demais herdeiros.
Há também consequências para os credores do herdeiro renunciante, segundo especialistas. Se a renúncia for feita com a intenção de prejudicá-los, os credores podem contestar essa decisão na Justiça, buscando anular a renúncia e utilizar a parte do herdeiro para quitar as dívidas.
Para que a renúncia à herança seja válida, dizem os advogados, ela deve ser formalizada de maneira expressa e por escrito, por meio de um termo lavrado em cartório ou em juízo. Além disso, a renúncia pode acarretar implicações fiscais, como a necessidade de recolhimento do Imposto de Transmissão Causa Mortis e Doação (ITCMD), especialmente se for feita em favor de herdeiros específicos.
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