Especialistas como Yuval Harari, Michael Burry e Ray Dalio reacendem o debate sobre uma possível bolha na corrida global por inteligência artificial. (Foto: Adobe Stock)
A euforia em torno da inteligência artificial (IA) reacende um alerta entre alguns dos nomes mais influentes do Vale do Silício e das finanças globais: estaria se formando uma nova bolha no mercado financeiro? De Yuval Harari a Michael Burry e Ray Dalio, as vozes dos gurus que moldam o debate veem sinais de excesso, ainda que discordem sobre o risco real de um estouro iminente.
Antes de discutir se o mercado de inteligência artificialvive uma nova bolha semelhante à das pontocom, nos anos 2000, é preciso compreender a dimensão do fenômeno. Historiador e autor de best-sellers como “Sapiens: Uma breve história da humanidade” e “Homo Deus: Uma Breve História do Amanhã“, Yuval Noah Harari explica que “antes de julgarmos se a IA é boa ou ruim, precisamos entender o que ela é e a magnitude da mudança histórica diante de nós“.
Para ele, independentemente do pessimismo ou do otimismo, o ponto comum está claro: a IA transformará tudo, do modo como trabalhamos e estudamos até a forma como nos relacionamos, consumimos informação e tomamos decisões.
Esse pano de fundo é essencial para enquadrar o debate. A euforia atual não nasce apenas de expectativas exageradas, mas de uma percepção generalizada, dentro e fora do Vale do Silício, de que a sociedade está à beira de uma nova infraestrutura global, algo comparável à eletrificação, à internet ou à computação em nuvem.
E justamente por isso, nomes influentes do pensamento e das finanças pedem cautela: é possível que a humanidade esteja caminhando para um período de excessos.
A volta de Michael Burry e o alerta da superexuberância
Nas últimas semanas, Michael Burry, que ficou mundialmente conhecido por prever o colapso imobiliário de 2008, reacendeu a discussão sobre uma possível “bolha de IA“. Em suas análises recentes, ele afirma que o mercado está ignorando riscos contábeis relevantes.
“As big techs estão estendendo artificialmente a vida útil dos chips e subestimando a depreciação, inflando os lucros reportados”, escreveu Burry em uma das publicações que viralizaram nas redes.
Segundo seus cálculos, essa manobra pode levar a uma superavaliação significativa dos resultados entre 2026 e 2028.
O ponto de Burry toca no coração da euforia atual: os megainvestimentos em chips, liderados por Nvidia(NVDC34), AMD(A1MD34) e fornecedores adjacentes, estão sendo tratados como ativos de longa utilidade, quando, na prática, passam a ser substituídos em ciclos cada vez mais curtos.
O raciocínio é simples: se os chips duram menos do que as empresas dizem, então elas estão mais frágeis do que parecem e seus lucros também.
O contexto que sustenta o medo: capex recorde e desaceleração de receitas
De fato, os números impressionam e ajudam a dar corpo à tese dos pessimistas. Segundo a Nord Investimentos, as big techs (grandes empresas globais de tecnologia) devem somar investimentos (capex), juntas, de mais de US$ 400 bilhões em IA em 2025 e devem aportar acima de US$ 500 bilhões em 2026 — valores que superam, em velocidade e escala, até mesmo os investimentos do auge da bolha da internet.
Além disso, há outro ponto frequente entre analistas que enxergam risco de bolha de IA: a desaceleração de receitas de Amazon(AMZO34), Meta(M1TA34 ) e Alphabet(GOGL34). Mesmo com forte geração de caixa nos negócios tradicionais, o crescimento do faturamento total das big techs perde fôlego, o que levanta a dúvida: esse ritmo de investimentos gigantescos será sustentável até que a IA gere retorno real?
É justamente sobre esse descasamento entre expectativa e resultado que Burry insiste que o mercado estaria projetando um futuro perfeito, mas ignorando fragilidades básicas do presente.
Ray Dalio: “Estamos em território de bolha, mas isso não significa que ela vai estoura agora”
Ray Dalio, fundador da Bridgewater Associates, que administra aproximadamente US$ 125 bilhões em nome de sistemas de previdências públicas e fundos soberanos, concorda que há sinais típicos de bolha. Em entrevista recente, ele afirmou que “não há dúvida de que estamos em território de bolha”, mas alertou para um segundo ponto: bolhas não estouram sozinhas.
“Não venda só porque há uma bolha”, disse Dalio. “O estouro depende de um gatilho.”
Normalmente, explica ele, esse gatilho vem da política monetária, um aperto forte dos juros, por exemplo. Só que, diferentemente das bolhas clássicas, “não é isso que estamos vendo agora”.
Para Dalio, o elemento decisivo ocorrerá quando investidores e empresas começarem a transformar riqueza em liquidez. Em suas palavras, “a necessidade de caixa é sempre o que estoura uma bolha”. E, por enquanto, ele não vê esse movimento.
Harari volta ao centro do debate: o risco não é só financeiro, é estrutural
Se Burry mira a contabilidade e Dalio avalia o ciclo macroeconômico, Yuval Noah Harari faz um alerta de outra ordem: risco sistêmico. Ele argumenta que o problema mais profundo da IA é que a humanidade não sabe como ela funciona, e nem mesmo seus criadores sabem. E isso amplia o risco para muito além do valuation (valor de mercado das empresas).
Harari destaca que algoritmos já decidem quem recebe crédito, quem é contratado, quem recebe tratamento médico e até quem pode ser considerado alvo em zonas de conflito. Para ele, a solução seria uma espécie de “CERN da IA” – sigla em inglês para Organização Europeia para a Investigação Nuclear –, uma entidade global capaz de compreender, auditar e regular coletivamente os sistemas mais poderosos.
Essa visão filosófica e social reforça por que o debate sobre bolha tecnológica não envolve apenas o aspecto financeiro. Há uma corrida tecnológica acelerada por incentivos econômicos que nem sempre caminham junto com segurança, governança ou transparência.
Bolha ou nova era? O que realmente está em disputa
Entre os pessimistas e os otimistas, o ponto comum é que o tamanho final da IA determinará se estamos diante de uma bolha especulativa ou da base de uma nova infraestrutura global.
A Kinea, explica a Nord, calcula que os investimentos em IA atuais exigiriam cerca de US$ 600 bilhões em receitas anuais para se justificarem, número que poderia ser alcançado por quatro grandes avenidas de monetização:
assinaturas;
APIs (regras e protocolos que permitem a comunicação entre diferentes softwares) corporativas;
publicidade;
comissões sobre transações.
Para os otimistas, esse número é plausível. Para os pessimistas, improvável nos próximos anos.