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- Ciro Silva é um jogador compulsivo que, este ano, entrou em processo de recuperação após décadas de um ciclo destrutivo causado pelo vício em apostas
- Ele está “sóbrio” há 152 dias, desde que frequentou a primeira reunião do grupo Jogadores Anônimos (JA). O JA é uma instituição sem fins lucrativos cujos membros são ludopatas, apostadores compulsivos, que compartilham suas experiências, desabafos e traumas em terapias em grupo
- Foi a luz no fim do túnel para Silva, que hoje divide seu dia a dia entre o emprego CLT, das 8h às 18h, e as reuniões presenciais do JA, duas vezes na semana. “Agora estou conseguindo recuperar minha dignidade, amor próprio, além de pagar minhas dívidas, que é minha obrigação”, afirma o contador
Ciro Silva (nome fictício) é um analista contábil de 51 anos. Começou a trabalhar com carteira assinada aos 15 anos, tem um salário elevado e profundo conhecimento sobre gestão financeira, já que cuida do fluxo de dinheiro de empresas. Mesmo assim, nunca conseguiu construir um patrimônio próprio, não tem casa, carro ou reserva de emergência. Silva é um jogador compulsivo que, este ano, entrou em processo de recuperação após décadas de um ciclo destrutivo causado pelo vício em apostas.
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Ele está “sóbrio” há 152 dias, desde que frequentou a primeira reunião do Jogadores Anônimos (JA), instituição sem fins lucrativos cujos membros são ludopatas, apostadores compulsivos, que compartilham suas histórias, perdas e traumas nas sessões de terapia em grupo. Os encontros acontecem pela internet e presencialmente em várias regiões do Brasil, todos os dias – acesse este site se você precisar de ajuda.
O JA surgiu como uma luz no fim do túnel para Silva, que hoje divide seu dia a dia entre o emprego com carteira assinada, das 8h às 18h, e as reuniões presenciais do grupo dos jogadores compulsivos, duas vezes na semana. “Agora estou conseguindo recuperar minha dignidade e meu amor próprio, além de pagar as dívidas, que é minha obrigação”, afirma o contador, que chegou ao JA após ter gastado pelo menos R$ 300 mil em cassinos online somente nos últimos cinco anos. Tinha dívidas com bancos, amigos e até agiotas.
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Como muitos dos integrantes, Silva chegou a solicitar no JA uma reunião especial, chamada “alívio de pressão”. Nele, membros mais experientes e com mais tempo longe das apostas orientam aquele novo integrante que ainda está “enforcado financeiramente” em função do vício a como voltar a ter controle sobre o dinheiro.
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O primeiro conselho dado a Silva, claro, foi “estancar a hemorragia”. Ou seja, parar de jogar e gastar dinheiro com outras possíveis compulsões, como o álcool. Depois, passar o controle financeiro para a mão de pessoas de confiança, procurar os credores e ser transparente com todo mundo.
“Eu falava para os credores: ‘Olha, eu sou compulsivo, entrei nessa, infelizmente. O que eu posso fazer para negociar?’”, conta. “Na reunião, também falam que devemos pagar todos, inclusive bancos. Mas os bancos foram os últimos da fila, porque tinham pessoas físicas que eu peguei dinheiro, que eu menti, inventei desculpas para me emprestar. Passei a contar a verdade para todos eles”, diz Silva.
O único “credor” com quem não teve conversa foi um agiota. Silva contraiu dívidas de cerca de R$ 20 mil a juros de 10% ao mês. Como contador, ele sabia bem o efeito que esse tipo de taxa sobre um débito, mas a fissura pelas apostas era maior. “Ainda que ele cobrasse mais do que isso, eu pegaria na época. O vício do jogo faz com que façamos isso”, afirma o analista contábil.
Para vencer os juros extorsivos, que poderiam triplicar o valor devido em 12 meses, Silva contou com a ajuda de um amigo para “trocar uma dívida cara por uma barata”. “Meu cunhado viu minha mudança a partir do momento que comecei a frequentar as terapias em grupo no JA e fez um consignado para mim. Com o empréstimo paguei o agiota e agora estou pagando meu cunhado, com parcelas muito menores.”
Bets são piores que cassinos físicos
Silva construiu uma nova vida para quem desenvolveu a compulsão há mais de três décadas, ainda na adolescência, e que acompanhou da pior forma o desenvolvimento dos jogos de azar e de apostas no Brasil. Ele entrou nesse mundo nos anos 1990, com 17 anos, ao realizar apostas diárias no centenário “jogo do bicho”. Dez anos depois, viu nascer a febre das máquinas caça-níqueis no País, escondidas em salas reservadas de padarias e bares.
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“Comecei a passar o cartão de crédito e pedir dinheiro emprestado com os donos dos estabelecimentos para jogar nesses caça-níqueis. Eu perdia uma quantia razoável, mas ainda era um gasto que eu conseguia me ajustar e pagar no mês. Nas caça-níqueis físicas de lanchonetes, a princípio, era possível apostar no máximo R$ 2,50 por rodada, com prêmio máximo de R$ 2 mil. Claro, eu já era compulsivo e não sabia”, diz Silva.
A situação, porém, saiu totalmente do controle a partir do surgimento das populares “bets” – os sites de apostas online. Ele iniciou com os palpites esportivos, mas logo encontrou os cassinos digitais disponíveis nas próprias plataformas. Diferentes dos caça-níqueis físicos, estes permitem grandes apostas, de R$ 500, por exemplo, a cada “giro”. Sem limite de prêmios. No início, o contador teve ganhos, como é comum de acontecer nesta modalidade de jogo de azar, o que o instigou a continuar apostando. Contudo, logo a “sorte virou” – o que também costuma acontecer.
“Muitas vezes cheguei a perder R$ 5 mil em meia hora”, afirma Silva. “Comecei a usar o limite de cheque especial, pedi adiantamento de férias do trabalho, usei meu 13º, saquei meu fundo de garantia e gastei R$ 150 mil de uma rescisão que tive, tudo em jogo. Queria fazer aportes maiores para buscar um grande ganho nas apostas. Tudo ilusão. Passei a perder sempre.”
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Para Ana Paula Hornos, psicóloga clínica e educadora financeira, as bets são piores do que os cassinos físicos e não só pela facilidade de acesso e possibilidade de jogar a qualquer momento, com valores cada vez maiores a cada rodada. “Essas plataformas são gamificadas, então possuem estímulos sonoros e visuais similares a um videogame, com os quais os jovens já estão acostumados. O problema ainda não é visto com a mesma gravidade que as drogas, é um comportamento socialmente reforçado entre amigos”, afirma.
A recuperação de um ludopata, entretanto, demanda um processo contínuo e multidisciplinar, com terapia cognitivo-comportamental, participação em grupos de ajuda, como o JA e, por vezes, acompanhamento psiquiátrico. Não há cura para a compulsão. “A terapia cognitivo-comportamental se mostra bastante eficaz, porque ajuda o paciente a reconhecer padrões de pensamento distorcidos e a desenvolver estratégias para controlar impulsos. É importante trabalhar o ambiente para eliminar ao máximo os gatilhos, como bloquear sites de apostas e desativar notificações relacionadas”, indica Hornos.
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Agora, no JA, Silva também entendeu que o que tem pode ser chamado de patologia incurável, mas que tem tratamento e pode ser controlada. Ele pretende continuar as reuniões em grupo e procurar ainda o acompanhamento de um psicólogo e, eventualmente, um psiquiatra. “Não podemos parar (de frequentar as terapias), somos doentes”, admite Silva.
300 jogadores anônimos por dia
O empresário Francisco Oliveira (nome fictício), de 50 anos, também passou duas décadas em uma espiral de jogatinas, abalo psicológico e perdas financeiras. O início de tudo remete apenas a uma partida de pôquer entre amigos, sem dinheiro envolvido. Logo se interessou mais pelo jogo e procurava as cartas cada vez mais. Um dia, migrou do baralho para jogo de dados e depois, para as apostas esportivas online. “Na época, não era que nem hoje. Só existiam alguns aplicativos clandestinos”, diz o empresário.
Atualmente, Oliveira também está em processo de recuperação, frequenta as terapias em grupo no JA e faz tratamento psicológico e psiquiátrico, com três remédios diários para compulsão.
Oliveira percebeu que as apostas tinham se tornado um problema quando se viu mais atento às jogatinas do que a todo os outros campos da vida. “Mais horas jogando do que trabalhando. Mais horas jogando do que com a família. Mais horas jogando do que socializando. Aí uma hora você percebe que o seu patrimônio está dilacerando”, relata. “Mas o pior vem do lado emocional, tomou conta de mim, a vida ficou ingovernável. Eu deixei de ver meus filhos crescerem, porque foram muitos anos (de compulsão).”
Em 2016, ele procurou pela primeira vez ajuda psicológica e psiquiátrica, mas só foi a partir das reuniões em grupo nos JA que ele realmente viu grandes melhoras. “De todos os remédios que eu tomei por oito anos, o que salvou a minha vida foram os Jogadores Anônimos. Hoje eu estou diminuindo os remédios, alcançando a recuperação”, afirma o empresário, que atua como voluntário na instituição sem fins lucrativos, já participou da linha telefônica de ajuda a viciados em jogo e auxilia na coordenação dos grupos de apoio.
Por dia, o empresário estima que de 300 a 400 pessoas participam de reuniões online do JA, que funcionam como uma solução para colocar para fora a tristeza provocada pela compulsividade, ao abrir o espaço para que os participantes compartilhem experiências individuais de cada um. Oliveira analisa que, atualmente, as pessoas têm acesso facilitado às apostas por conta das bets, e assim algumas delas se viciam. Diariamente, dezenas procuram ajuda na instituição, o que significa centenas de novatos por semana. Contudo, os jogadores compulsivos também estão conseguindo tratamento mais rápido.
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Da mesma forma que o apelo aos jogos de azar acontece na internet, a divulgação de grupos como o JA também corre com mais velocidade. “Se eu tivesse encontrado jogadores anônimos com dois ou três anos após o meu problema ter começado eu não tinha feito um buraco na minha vida emocional, psicológica e financeira”, conta Oliveira.
Vício em apostas: questão de saúde pública (e de educação financeira)
Para Bia Santos, CEO da Barkus e embaixadora do programa “Direto ao Tesouro”, de capacitação de usuários para investimento no Tesouro Direto, o avanço das apostas online sobre o bolso dos brasileiros só aprofunda as desigualdades no País. De acordo com um relatório do Banco Central (BC), beneficiários do Bolsa Família transferiram R$ 3 bilhões em agosto a empresas de apostas, por meio de transferências via Pix. Nesse mês, os players de apostas receberam cerca de R$ 20,8 bilhões dos brasileiros.
A bola de neve das bets no Brasil começou a se formar a partir de 2018, quando a Lei nº 13.756 abriu espaço para que as apostas de quota fixa (esportivas) operassem no Brasil. Foi a brecha necessária para que não só essas plataformas se popularizassem, mas que os cassinos online também encontrassem espaço para se entrenhar no orçamento dos brasileiros.
Agora, o governo tenta regulamentar a atividade. Desde a última sexta-feira (11), as casas de apostas que não pediram liberação para atuar no País junto ao Ministério da Fazenda serão banidas – veja a lista delas. As bets autorizadas terão que pagar impostos, ter subsidiária nacional e cumprir regras de combate à fraude, lavagem de dinheiro e publicidade abusiva. Ainda assim, o desafio adquiriu grande proporção em termos de educação financeira e impactos negativos das apostas nas finanças da população.
“As bets e os jogos de azar conseguiram encontrar o chamariz para a população, principalmente para as classes C,D e E”, afirma Santos. “A promessa de um ganho rápido e fácil. A promessa de que, com pouco dinheiro, aquele usuário vai conseguir multiplicar o seu recurso em pouquíssimo tempo.”
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Na experiência com alunos da Barkus que apostavam em bets, Santos percebeu que ainda há pouco conhecimento sobre como funcionam os mecanismos de aposta e o porquê de não poderem ser confundidos com investimentos ou renda extra. “Quando olhamos para alternativas de investimentos mais seguras, infelizmente esse ganho rápido e fácil, que é prometido na aposta, não vai vir no discurso”, diz Santos. “Os investimentos mais conservadores, como o Tesouro Direto, trazem um olhar de perenidade, de construção e segurança. Algo que as bets nunca poderiam oferecer.”
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Segundo Santos, a educação financeira pode ser uma arma para frear a febre das bets. Ela explica, por exemplo, que para aqueles que fazem questão de apostar como entretenimento, o porcentual do orçamento direcionado para as apostas deve ser o mínimo possível, menos de 1% dos rendimentos mensais. Contudo, o valor médio mensal das transferências, segundo o BC, chega a R$ 100 entre os mais jovens e a R$ 3 mil entre os mais velhos. De acordo com o Itaú BBA, R$ 23,9 bilhões foram perdidos por brasileiros com apostas entre junho de 2023 e junho de 2024, equivalentes a 0,2% do Produto Interno Bruto (PIB) do País.
“Melhorando o entendimento dos cidadãos em relação ao sistema financeiro, evitaremos que a viralização de apostas como ‘pseudoinvestimentos’ aconteçam. As pessoas poderão ter consciência do que, de fato, é investimento ou não”, diz Santos.
A psicóloga Hornos também tem uma visão parecida. “A educação financeira é necessária na prevenção do vício. Ajuda no conhecimento técnico e na mentalidade de longo prazo para promover escolhas conscientes e evitar a atração pela falsa promessa do ‘dinheiro fácil’”, afirma. “Em um país com grande parcela da população em situação de vulnerabilidade, qualquer jogo de azar, incluindo bets, deveria ser proibido e criminalizado.”
Márcia Tolotti, especialista em psicofinanças, vê grande risco à população. “Cerca de R$ 23 bilhões foram perdidos em apostas, durante um ano, pelos brasileiros. Certamente, estamos diante de uma sociedade viciada.”
Como saber se você está fora de controle?
Para quem se torna compulsivo, nem sempre identificar o problema é fácil. Muitos ludopatas passam pelo estágio da negação, como ocorreu tanto com Silva e como com Oliveira. Contudo, alguns sintomas de compulsão por apostas e jogos de azar devem ser considerados. Tolotti elencou alguns comportamentos:
- Necessidade de jogar, deixando tarefas importantes de lado;
- Aumento dos valores das apostas;
- Não conseguir parar, mesmo quando prometer a si mesmo (ou aos outros) que vai parar;
- Usar tempo e dinheiro nas apostas, deixando até compromissos financeiros de lado na ilusão de “recuperar” dinheiro;
- Mentir sobre o jogo, esconder que está jogando;
- Usar o jogo para fugir de problemas ou frustrações;
- Ouvir de familiares e amigos próximos que está exagerando no tempo dedicado aos jogos;
- Se isolar para jogar, se afastar da convivência com outras pessoas frequentemente.
Caso você se identifique com esses sintomas, procure ajuda psicológica ou grupos de apoio, como os Jogadores Anônimos. “O tratamento trabalha as emoções que levaram ao vício em apostas, pois o comportamento financeiro é, em grande parte, guiado por fatores emocionais que precisam ser compreendidos e ressignificados para evitar recaídas”, completa Hornos.
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