Educação Financeira

O Auxílio Brasil paga mais que o Bolsa Família? Como organizar as contas

Entenda os efeitos da inflação no bolso dos beneficiários de programas de transferências de renda

O Auxílio Brasil paga mais que o Bolsa Família? Como organizar as contas
Presidenciáveis discutiram valores do antigo Bolsa Família e do atual Auxílio Brasil em debate. Foto: NELSON ALMEIDA e EVARISTO SA | AFP
  • No último domingo (16), o atual presidente Jair Bolsonaro enfrentou o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva no debate promovido pela Band
  • Durante a discussão, o militar da reserva afirmou que o Auxílio Brasil havia triplicado os repasses do Bolsa Família. Contudo, é preciso considerar o efeito da inflação no bolso dos brasileiros e diferenças de poder de compra
  • “Essa avaliação (comparar valores) é muito singela. O conjunto de avaliação deveria ser muito mais amplo, caso a discussão seja em torno de qual governo foi mais benéfico para política pública”, explica Guilherme Baia, planejador financeiro da Fiduc

Durante debate realizado no domingo (16), o candidato à reeleição, Jair Bolsonaro (PL), criticou os supostos baixos valores pagos aos antigos beneficiários do Bolsa Família, programa de transferência de renda criado durante o governo de Lula (PT), seu oponente no segundo turno.

“Só de Auxílio Emergencial nós gastamos o equivalente a 15 anos de Bolsa Família, que pagava muito pouco. Algumas pessoas mais humildes, em especial no Nordeste, começavam recebendo R$ 42”, afirmou o atual chefe do executivo, declarando que o Auxílio Brasil (programa de transferência de renda da atual gestão) paga o triplo do Bolsa Família.

O Programa Bolsa Família (PBF) foi criado em outubro de 2003 para famílias em situação de pobreza ou extrema pobreza (com renda mensal por pessoa de até R$ 178, na época). De acordo com dados do Ministério da Cidadania, em janeiro de 2004 o benefício médio do PBF era de R$ 72,81.

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Contudo, nessa conta é preciso considerar também os efeitos da inflação. Isto é, o que era possível comprar em 2004 com R$ 72,81 e o que é possível comprar em 2022 com a mesma quantia.

Reajustando esse valor pela inflação medida pelo Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) entre janeiro de 2004 e setembro de 2022, o benefício médio do PBF naquela época equivaleria a cerca de R$ 206,47 nos dias de hoje, segundo cálculos feitos por Guilherme Baia, planejador financeiro da Fiduc.

É importante lembrar que no PBF não existia valor máximo a ser repassado aos participantes. Dependendo da composição familiar (se tem crianças, gestantes, lactantes e/ou adolescentes, por exemplo) e faixa de renda, o benefício poderia ser ampliado até que aquele núcleo saísse da condição de extrema pobreza (renda mensal per capita de até R$ 89).

“Esse valor é uma média, formada por aqueles que recebem mais e aqueles que recebem menos. Precisamos levar em conta os extremos”, afirma Baia.

Outro ponto é que, em 2003, o salário mínimo era de R$ 240 (dados do Ipea), o que significa que somente os R$ 72,81 de benefício médio já significavam 30% desse montante. O preço médio do botijão de gás em SP, de acordo com dados da Agência Nacional de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP) era de cerca de R$ 28,8. Isto é, com o valor médio do BF era possível adquirir 2,5 “botijões” de 13 kg.

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“Sempre partimos do princípio de que temos que comparar valores reais, não faz sentido comparar valores nominais em 2003 e 2022”, afirma Rogério da Veiga, especialista em política pública e gestão governamental.

Já o Auxílio Brasil, como foi instituído em dezembro de 2021, pagaria R$ 220 de benefício médio aos participantes. Em caráter emergencial, foi adicionado um “benefício extraordinário” para que cada família participante recebesse pelo menos R$ 400. Em agosto deste ano, o valor emergencial foi ampliado, completando os R$ 600, e com prazo até dezembro.

Para o ano que vem, o orçamento prevê um Auxílio Brasil de R$ 405, apesar das declarações de ambos os candidatos, Lula e Bolsonaro, no sentido de manter o patamar de R$ 600. Diferente do Bolsa Família, na prática, não há como ganhar mais do que esse montante pelo benefício para a superação da extrema pobreza, independentemente do número de membros da família.

“Para uma família receber mais de R$ 600, teria que ser formada por pelo menos sete membros e sem renda nenhuma”, afirma Veiga. “É estatisticamente impossível.”

Do jeito que está agora, o Auxílio Brasil é maior do que os pagamentos do Bolsa Família, mesmo que reajustados pela inflação. Contudo, o cenário econômico mudou, já que o salário mínimo atual, por exemplo, é de R$ 1.212. O preço médio da cesta básica em São Paulo entre janeiro e setembro de 2022 é de R$ 760,45, ante R$ 171,63 em 2004, de acordo com dados do DIEESE.

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“É preciso lembrar que o valor de R$ 600 foi pago por apenas dois meses, surgiu às vésperas da eleição – passando por cima da lei eleitoral e do teto de gastos – e tem previsão para acabar em 2022. Já Bolsa Família foi um programa estruturado de forma sustentável financeiramente para o governo, e que perdurou por 18 anos”, explica Lai Santiago, educadora financeira da fintech Open Co.

Essa também é a visão de Veiga, especialista em política pública e gestão governamental. “Não foi incluso no orçamento, ficou na promessa”, diz.

Uma história sobre poder de compra

O efeito da inflação no poder de compra é um dos motivos pelos quais comparar valores monetários nominais em épocas muito distintas é desaconselhado. Até mesmo a tentativa de corrigir esses valores pela inflação acumulada no período não é um método totalmente assertivo, já que cada classe social é impactada de forma diferente pelo aumento generalizado de preços.

“É como um cobertor curto: vai cabendo cada vez menos embaixo desse cobertor”, explica Carol Stange, educadora em finanças pessoais. “No caso (de inflação), o dinheiro vai ficando cada vez mais curto e as coisas cada vez mais caras.”

Um exemplo dessa corrosão do poder de compra é o que aconteceu com o próprio Bolsa Família. Como dito acima, o benefício médio em janeiro de 2004, se reajustado pela inflação acumulada até setembro deste ano, equivaleria a R$ 206,47 atualmente. Dez anos depois, em janeiro de 2014, o valor nominal avançaria para R$ 150,27 (R$ 250,90 reajustando pela inflação).

Já em março de 2020, início da pandemia, o valor nominal médio do PBF foi de R$ 191,86, que de acordo com a calculadora do cidadão, ferramenta do Banco Central, equivaleria a R$ 228,67 atualmente – menos que em 2014 e com o poder de compra muito menor que em 2004. Basta lembrar do valor médio da cesta básica atual em São Paulo, que ultrapassa os R$ 700, segundo o DIEESE, e do salário mínimo acima de R$ 1 mil.

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Em outras palavras, os repasses ficaram longe de acompanhar o aumento de preços no decorrer dos anos. Inclusive, durante o Governo Bolsonaro (2019 a 2021) o programa Bolsa Família ficou totalmente estagnado, sem reajustes.

“No começo, era possível custear uma cesta básica com o Bolsa Família, mas ao final do segundo mandato de Lula o valor já não tinha essa mesma capacidade”, afirma Santiago. “O mesmo acontece com o Auxílio Brasil hoje, não é viável para uma família custear uma cesta básica com ele.”

A não obrigatoriedade do reajuste pela inflação era um dos pontos criticados dentro do programa Bolsa Família, e que permaneceu no Auxílio Brasil. Ou seja, essa deterioração do poder de compra pode acontecer com o atual benefício, caso os valores não sejam corrigidos.

“O BF sempre foi um programa ligado à disponibilidade orçamentária. Era decisão de cada governo realizar o aumento”, diz Veiga. “O governo atual teve a oportunidade de mudar isso no Auxílio Brasil, enviar uma previsão de reajuste pela inflação que garantisse pelo menos o poder de compra ao longo do tempo. Teve esse tipo de emenda no Congresso e o governo colocou todo seu esforço pra mudar isso.”

Baia, da Fiduc, ressalta ainda que comparar programas sociais apenas pelos valores repassados é uma análise superficial, que pode induzir ao erro. O correto é analisar o todo, ou seja, quanto do orçamento disponível foi aplicado nos programas, o número de famílias atendidas, os impactos e a conjuntura econômica de cada época.

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“Essa avaliação é muito singela. O conjunto de avaliação deveria ser muito mais amplo, caso a discussão seja em torno de qual governo foi mais benéfico para política pública”, explica Baia.

Santiago, de Open Co, compartilha dessa opinião. Segundo a especialista, é preciso olhar para além do uso do dinheiro na compra no mercado, mas para outras necessidades. Em especial, na área da saúde. O PBF exigia que a família realizasse exame pré-natal, que os filhos tivessem frequência escolar e vacinação em dia. Já no Auxílio Brasil, não haveria um foco determinado.

“Temos uma série de pequenos benefícios, como bônus para crianças e adolescentes atletas ou que se destaquem em determinadas competições acadêmicas. O fato é que, apesar de ser um incentivo positivo, uma parcela pequena das crianças e adolescentes tem excelência nessas áreas. As crianças que receberão os incentivos, no final das contas, serão aquelas que, no grupo de família socioeconomicamente vulneráveis, menos precisam”, diz Santiago.

Luta contra a inflação

O dragão da inflação prejudica não só os beneficiários de programas de transferência de renda, mas toda a população. No mercado financeiro, a busca por ganhos reais é unânime entre os investidores, já que mais do que ganhar dinheiro, é necessário ganhar acima da inflação.

Para quem pode deixar o dinheiro guardado por mais tempo, investimentos atrelados ao IPCA são indicados para que o capital não seja consumido pela deterioração do poder de compra. Os títulos Tesouro IPCA+, que pagam uma taxa fixa mais a inflação do período, são alguns exemplos. (Veja aqui investimentos contra a inflação)

Como organizar as contas e não perder o controle

Organização é a prioridade número 1 para quem deseja ajustar a vida financeira. Por isso, planilhas podem ser um excelente instrumento para quem recebe o auxílio e deseja fazer os gastos caberem dentro das receitas.

Para Luciana Maia Campos Machado, superintendente acadêmica e professora na Fundação Instituto de Pesquisas Contábeis, Atuariais e Financeiras (FIPECAFI), a planilha de controle financeiro é uma ótima ferramenta para o planejamento e auxílio nas conquistas das metas de curto, médio e longo prazos.

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Ao estruturar uma tabela de valores é possível visualizar entradas e saídas de dinheiro. “Quando criamos uma planilha de controle financeiro, passamos a enxergar nossas receitas e despesas mensais e quanto de nossa renda está comprometida com gastos fixos e variáveis”, diz.

Sabendo qual é a parcela da renda que está comprometida com as contas mensais, é possível pensar em um fluxo de caixa mensal e provisionar capital para viagens, projetos pessoais e, claro, uma reserva financeira que dê segurança.

Há ainda outra vantagem em alimentar uma planilha financeira: o efeito disciplinador de registrar e acompanhar tendências de consumo — e refletir sobre quais despesas são necessárias ou não. “Em um momento de restrição de renda, em que é necessário economizar, fica mais fácil readequar o orçamento se há controle sobre os gastos”, afirma Machado.

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