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Bolsa de Valores de Caracas e mercado financeiro da Venezuela revelam a grande “farsa” no país de Maduro

Em meio ao caos político, mercado financeiro do país foi destroçado; procurada, embaixada da Venezuela não se manifestou

Bolsa de Valores de Caracas e mercado financeiro da Venezuela revelam a grande “farsa” no país de Maduro
Mercado financeiro da Venezuela foi dizimado nas últimas décadas (Foto: Rafa Neddermeyer - Agência Brasil)
  • Como tudo relacionado ao mercado financeiro venezuelano, o site do Banco Central do país também parece uma grande fachada; procurada, embaixada não quis se manifestar
  • Em termos nominais, o IBC, índice equivalente na Bolsa de Caracas ao Ibovespa brasileiro, é um dos que mais cresceu no mundo
  • Situação caótica da Venezuela vai impactar os países vizinhos e pode haver, inclusive, um novo fluxo de imigração para o Brasil, diz especialista

Quem procurar por “Banco Central da Venezuela” (BCV) na internet até encontrará um site oficial. Antes de clicar no link, a instituição passa certa credibilidade na descrição: “BCV é o organismo responsável, como principal autoridade econômica, por zelar pela estabilidade monetária e de preços”. Contudo, o endereço eletrônico é impossível de ser acessado.

Após algum tempo esperando a página carregar, a mensagem de erro entrega rapidamente uma farsa. Como tudo relacionado ao mercado financeiro venezuelano, o site do BCV também parece uma grande fachada construída a partir da radicalização do governo Hugo Chávez, nos anos 2000, agravada pela crise de 2008 e perpetuada pelo sucessor Nicolás Maduro, que teve vitória declarada pelo Conselho Nacional Eleitoral (CNE), mas em meio a suspeitas de fraude no pleito. Vinculado ao governo venezuelano, o órgão não divulgou as atas de votação e tem ignorado os pedidos por transparência dos resultados de países como o Brasil.

Asdrúbal Oliveros, economista e diretor da Ecoanalítica, empresa de consultoria econômica venezuelana, comenta que a atividade econômica está hoje praticamente do tamanho do que era visto em 1999, antes de o Chavismo chegar ao comando do país. “No período de 2015 a 2021, a economia venezuelana teve uma contração de quase 70%. Além disso, entre 2017 e 2021, sofreu um ciclo hiperinflacionário inédito em nossa história”, diz.

Ele aponta que o governo de Nicolás Maduro tem tentado controlar a inflação com as políticas monetárias e fiscais restritivas, com destaque positivo para a redução do déficit fiscal e da estabilidade cambial. Só que ainda há problemas. “Um dos mecanismos para tentar manter a inflação sob controle é ter um altíssimo depósito compulsório. Mas isso impede o crescimento do crédito e implica em sérias limitações para que o setor privado e o consumo possam decolar.”

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Em meio a essa incerteza com o cenário econômico, a desconfiança dos agentes financeiros fica estremecida com o fato de o Banco Central da Venezuela não ser independente do governo. Eduardo Mello, coordenador do curso de Relações Internacionais da Fundação Getulio Vargas (FGV), destaca que o único recurso que restou à população do país sul-americano foi a dolarização. Muita coisa (incluindo produtos, serviços e até salários) lá está convertida para o dólar, tudo isso em meio a uma inflação. Esse problema, aliás, não está completamente dimensionado, já que os dados financeiros são questionados por analistas de mercado e economistas.

“Um dos motivos pelos quais os investidores não investem em uma economia dessas, de uma autocracia, é que os dados são muito manipulados”, ressalta Mello. “Tem alguns profissionais que tentam independentemente calcular a inflação da Venezuela, normalmente pessoas ligadas à oposição, que moram fora do país. Mas é sempre uma aproximação. Muito difícil saber de verdade”, diz Mello.

Essa percepção não aparece à toa: embora o site do Banco Central da Venezuela esteja fora do ar, a imprensa local repercutiu a inflação de junho nas últimas semanas. No mês, a variação do Índice Nacional de Preços ao Consumidor (INPC) foi de 1%, porcentual que não era registrado desde julho de 2012. No acumulado dos seis primeiros meses do ano, a inflação subiu 8,86%, enquanto nos últimos 12 meses o avanço foi de 51,37%.

Só que esses números divergem do que foi apurado pelo Observatorio Venezolano de Finanzas (OVF, entidade independente que elabora estatísticas econômicas do país), que estimou que a inflação na Venezuela em junho alcançou os 2,4%. O acumulado no primeiro semestre foi de 18,1% e a taxa nos últimos 12 meses ficou em 68%.

O E-Investidor tentou contato com a Embaixada da Venezuela, porém não teve retorno até o fechamento da reportagem.

Bolsa de Valores de Caracas dispara 69.795% em 4 anos

O empobrecimento da população pela inflação é facilmente identificado no que resta do mercado financeiro da Venezuela. Se o site do Banco Central está fora do ar, o da Bolsa de Valores de Caracas (BVC) continua funcionando, mas com uma escassez gritante de informações.

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Com o país mergulhado no caos após declaração da vitória de Maduro nas eleições presidenciais, o Índice Bursátil Caracas (IBC, o Índice de Ações de Caracas), equivalente ao Ibovespa da Bolsa brasileira, subiu 2,73% nesta quinta-feira (1º). Houve a movimentação de 593.278,00 bolívares soberanos (cerca de R$ 95 mil) em papéis de 20 companhias, com 175 operações de compra ou venda de ações. A Bolsa da Venezuela apresenta cerca de 90 empresas registradas como emissores, maioria estatais, como bancos e empresas de telecomunicações.

“A existência de um mercado financeiro em Caracas serve de tentativa de demonstrar uma normalidade, mas é uma fachada, já que na verdade não existe nada disso. É um símbolo de uma normalidade que já não existe há décadas, porque nada mais capitalista e libertário do que o mercado financeiro”, diz Thiago de Aragão, diretor de estratégia da Arko Advice e colunista do E-Investidor.

Ainda assim, em termos nominais, o IBC é um dos índices que mais cresceram no mundo. De janeiro a julho de 2024, a alta foi superior a 65%, mas o mais surpreendente é observar os últimos quatro anos, em que o avanço foi de 69.795% (gráfico abaixo). Para se ter uma ideia, em 31 de janeiro de 2020 o fechamento foi de 129,54 pontos. Já no dia 30 de julho de 2024, o índice encerrou as negociações a 90.100,48 pontos.

 

Para Graciela Rodriguez, analista em uma corretora venezuelana, a explicação para a valorização impressionante que o índice tem demonstrado ocorre porque o país vive sob uma economia bastante volátil. "Desde 2003, temos controle cambial, passamos por medidas econômicas muito severas e uma infinidade de fatores que afetam direta ou indiretamente a nossa economia e a das empresas", diz. Ao E-Investidor, ela compartilhou a variação porcentual do IBC em relação ao dólar, publicada oficialmente pelo Banco Central.

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Ano Taxa Oficial do BCV Índice IBC
2020 2.273,98% 1.376,39%
2021 313,50% 344,30%
2022 280,07% 253,92%
2023 106,08% 176,08%
2024 1,75% 54,32%

 

Investir na Venezuela

No entanto, esse crescimento surpreendente é visto como uma tentativa de correção da inflação venezuelana para quem está fora do país. Segundo Marcelo Godke, advogado especialista em mercado de capitais e professor do Insper, o índice é composto majoritariamente por microcaps (empresas pequenas e de baixa capitalização) ou de “pouca importância” sob o ponto de vista internacional.

Para ele, investir na Venezuela é arriscado. “A não ser que o investidor compre ações hoje, pagando muito barato, com a perspectiva de que algum dia a situação vá mudar por lá. Mas não é um mercado que há qualquer perspectiva positiva atualmente”, alerta. Além disso, Godke cita o fato de as informações das empresas listadas não serem confiáveis para os investidores, visto que elas são previamente compartilhadas com a BVC e a Superintendencia Nacional de Valores – Suvanal, que desempenha papel parecido com a Comissão de Valores Mobiliários (CVM) brasileira – antes de irem a público.

Vale pontuar que, como qualquer outra Bolsa de Valores, a de Caracas conta com um Regulamento Geral, publicado em 2009. O artigo 53 estipula que ela procurará manter um “sistema de informações eficiente”. Só que ao buscar diretamente pelas demonstrações financeiras das empresas em seu site quase não há informações. Nessa guia do site, estão disponíveis apenas os resultados da “Ceramica Carabobo”, mas os investidores devem pagar 100 bolívares soberanos para acessá-los – o equivalente a cerca de R$ 15. Os dados da companhia são de 2022 e 2023.

Por outro lado, na aba de notícias algumas atualizações das companhias listadas são publicadas. Há, por exemplo, as demonstrações financeiras do Grupo Zuliano referentes ao mês de fevereiro de 2024, que foram divulgadas em junho. Ao contrário do que é visto no Brasil, onde o investidor pode pesquisar pelo nome da companhia listada e a data de publicação na página da CVM, na bolsa venezuelana não há filtros de pesquisa.

Outra grande diferença em relação ao mercado de capitais de outros países está no fato de que a própria Bolsa venezuelana é que fica responsável por divulgar os fatos relevantes das companhias. Conforme aponta o artigo 12, a entidade manterá os investidores e o público em geral informados sobre as movimentações, porém a veracidade dos dados é de responsabilidade das empresas.

A escassez de negócios e de informações na Bolsa de Caracas somente reflete o sofrimento da população venezuelana. “Hoje, um aposentado na Venezuela ganha US$ 5 por mês. Ele não vai investir na bolsa. No país, não há participação da sociedade na bolsa de valores, isso não existe, não tem como existir”, afirma Aragão.

Asdrúbal Oliveros, da Ecoanalítica, segue na mesma linha — destacando a redução de salários e o empobrecimento da população —, porém afirma que o ambiente de negócios na Venezuela já foi pior durante o Chavismo. Agora, segundo ele, o governo Maduro se tornou um pouco mais pragmático e está tentando atrair investimentos para o setor privado.

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“O grande problema da Venezuela é, primeiro, uma profunda fraqueza institucional, já que não há separação entre os Poderes e a Justiça não atua de forma independente. Isso funciona como uma grande limitação. Outra restrição diz respeito ao tamanho do mercado, que se reduziu muito, o que faz com que algumas empresas não vejam o nosso país com interesse”, diz. Um terceiro problema que tem afetado o mercado financeiro da Venezuela vem de fora: as sanções. Isso também afasta o capital estrangeiro no país.

A história do “fim” do mercado financeiro venezuelano

O mercado financeiro da Venezuela sempre foi considerado pequeno, considerando a totalidade de empresas listadas, e limitado porque a movimentação deve ser feita em bolívares soberano. Oliveros explica que, em termos de tamanho, o sistema financeiro do país não chega a 5 pontos porcentuais do Produto Interno Bruto (PIB), sendo que a carteira de crédito responde a 1,5 ponto porcentual. "É um sistema com sérias limitações para acompanhar o setor privado, público e o pessoal. São necessárias reformas profundas para garantir que ele volte a crescer e, sobretudo, para alcançar o número ideal de bancos na Venezuela (que hoje são mais de 30)."

Por isso, o mercado venezuelano depende basicamente da PDVSA, estatal do petróleo, com papéis classificados como “default” desde 2017. O país tem as maiores reservas comprovadas da commodity, na frente até mesmo da Arábia Saudita. Tamanha dependência da economia de uma mercadoria tem até nome: “doença holandesa”.

“A economia venezuelana sempre foi dominada pela indústria do petróleo. Logo, a bolsa também”, diz Mello. “Acontece que nesses países que sofrem com a ‘doença holandesa’ é tão rentável explorar o petróleo que todos os recursos financeiros acabam convergindo para esse setor. E isso mata as outras áreas da economia. A Venezuela é um caso emblemático dessa situação, usado em manuais de economia.”

Fora a PDVSA, que está envolvida em suspeitas de corrupção – Tareck El Aissami, ex-ministro do Petróleo e ex-presidente da estatal foi preso em abril deste ano –, e além de sanções internacionais, existiam algumas outras poucas companhias de destaque nos anos 2000, quando a bolsa ainda tinha alguma movimentação sob o governo Chávez. Essas empresas estavam concentradas principalmente no setor bancário, cujo crédito também era muito atrelado ao petróleo, e algumas poucas voltadas ao mercado doméstico.

Rapidamente, paralelamente ao endurecimento do chavismo, essas companhias foram falindo ou sendo estatizadas. Para Mello, a “morte” do mercado financeiro venezuelano aconteceu de forma gradativa, principalmente a partir de 2008, quando a Crise do Subprime, nos EUA, se alastrou pelo mundo. Com os preços internacionais depreciados, o chavismo passou a radicalizar as estatizações. “No início do chavismo já existia, claro, bastante risco. Isso afetava o mercado financeiro e todo o resto da economia venezuelana, mas não se tinha essa ideia de que o chavismo ia evoluir para uma coisa tão radical, tão autocrática, como é hoje”, diz Mello. “Ainda havia o pensamento de que era possível conviver com o chavismo.”

Fuga de capital do mercado financeiro venezuelano

Einar Rivero, fundador da consultoria Elos Ayta e profissional de dados financeiros há mais de 25 anos, acompanhou a deterioração do mercado acionário da Venezuela. Ele notou, que a partir da entrada de Maduro, em 2013, a já esvaziada Bolsa de Caracas passou a caminhar ainda mais aceleradamente em direção ao abismo.

Monitorando diariamente os dados financeiros do país, ele passou a perceber comportamentos erráticos no mercado. “A bolsa estava aberta, mas não tinha nenhum negócio. Começaram a ter dias sem ninguém negociar nada, porque realmente as empresas estavam todas destruídas e os investidores não queriam arriscar colocar dinheiro nelas”, diz Rivero. “Iniciou-se uma intensa fuga de capital por meio de corretoras para a renda fixa de outros países próximos à Venezuela.”

O especialista em dados chegou a contratar um representante venezuelano, ex-profissional de dados da Bolsa de Caracas, para levantar informações a respeito do mercado. Ainda assim, não foi o suficiente, já que quase não havia precisão nos dados, o que o fez desistir de tentar obter mais informações do país. “Era tão ruim [o ambiente de negócios] que não havia sequer dados disponíveis. Todos estavam em papel, não tinham nenhum tipo de segurança”, afirma Rivero. “A bolsa acabou morrendo.”

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O histórico do Índice Bursatil de Caracas também deixa transparecer as dificuldades econômicas do país governado por Maduro. Pelo menos por três vezes, em 2017, 2018 e 2021 (picos de alta conforme gráfico abaixo), o indicador precisou passar por "desagrupamentos".

"Como há uma economia absolutamente instável na Venezuela, o índice acaba subindo muito em função da inflação e outros motivos que não são de mercado. Os valores ficam tão elevados que não é possível mais utilizar o índice nesses patamares de negociação. Então, surge  um desagrupamento, para colocá-lo em um nível mais baixo. Nesse gráfico, vemos três vezes em que isso foi feito", afirma Rivero. "Me chama muito a atenção, porque na última vez que o Ibovespa fez isso, por exemplo, foi na época do Plano Real."

E não foram só os venezuelanos que tinham dinheiro que migraram para fora da Venezuela. Nas contas de Aragão, diretor de estratégia da Arko Advice, pelo menos 100 empresas que operavam no país migraram para mercados próximos, como o da Colômbia, há pelo menos duas décadas.

“Existem várias empresas venezuelanas que se mudaram há muitos anos para a Colômbia. Por exemplo, a Locatel, Farmatodo, que é uma rede de farmácias, Congrupo e etc., essas empresas se mudaram totalmente para a Colômbia. Só que, antes mesmo disso acontecer, as companhias já tinham abandonado o mercado financeiro venezuelano. O mercado financeiro depende de credibilidade, que acabou 100% depois que Chávez assumiu o poder”, diz o diretor.

Impactos no Brasil

"Viver na Venezuela é complexo, aqui costumamos dizer que nunca nos entediamos", brinca o economista venezuelano Asdrúbal Oliveros. Ele afirma que se o país não resolver sua crise política e continuar isolado com um governo não reconhecido e sem muita segurança jurídica, a capacidade de crescimento econômico ficará inviável. "Vai dificultar a atração de investimentos, o desenvolvimento do setor petrolífero e a eliminação das sanções."

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Para Aragão, a única resolução possível para a atual crise está na confirmação da vitória de Edmundo González, concorrente de Maduro. “Até isso acontecer, a situação na Venezuela vai ficar muito caótica. E conforme o tempo vai passando, essa situação caótica vai impactar os países vizinhos. Pode haver um novo fluxo de imigração e isso vai afetar o Brasil”, diz Aragão. O especialista explica que, desta vez, os indícios de fraude eleitoral são grandes demais para passarem desapercebidos pela população venezuelana.

“O governo não esperava que a diferença de votos entre González e Maduro fosse tão grande. É muito mais difícil você esconder um elefante do que esconder uma barata”, afirma Aragão. “Se a diferença de votos fosse pouca, a favor do González, era mais fácil fazer uma manipulação. A população podia até discordar, mas aceitaria mais rapidamente porque estaria mais equilibrado. Agora, foi muito desproporcional. A população sabe que o resultado não faz sentido.”

Em relação às empresas brasileiras, o impacto viria se uma reviravolta acontecesse. Ou seja, em um cenário em que González assumisse, de fato, o país, o que aliviaria as sanções econômicas impostas ao petróleo venezuelano. Com maior oferta da commodity no mundo, o preço do óleo cederia. Mello, da FGV, acredita que nessa conjuntura a PDVSA teria uma recuperação rápida. Reestruturar o país, por outro lado, demandaria tempo.

"A Venezuela tem potencial de rapidamente voltar a ser uma economia relativamente próspera por causa das reservas de petróleo. Mas, para qualquer pessoa que pense em investir no país, é preciso levar em consideração que, mesmo em um cenário de mudança política, a nação deve passar os próximos anos renegociando dívidas", diz o professor da FGV.

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