- Com sede em Gaithersburg, no estado americano de Maryland, a companhia nunca havia levado ao mercado uma única vacina em 33 anos de história. Apesar disso, os executivos demonstraram otimismo com a tecnologia da Novavax
- O governo Trump já sinalizou que deseja investir em várias tecnologias de vacina, e a Novavax – que usa proteínas do coronavírus para ativar a resposta imune – oferece uma estratégia diferente de outras empresas que também receberam uma generosa ajuda federal
(Katie Thomas e Megan Twohey/NYT News Service) – No final de fevereiro, enquanto o coronavírus se espalhava pelo mundo, o médico Richard Hatchett – diretor de uma organização internacional sem fins lucrativos que financia desenvolvedores de vacinas – recebeu um telefonema importante logo depois de pousar no aeroporto de Heathrow, em Londres.
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Do outro lado da linha estavam executivos da Fundação Bill & Melinda Gates, uma das fundadoras e apoiadoras da entidade de Hatchett. Eles queriam conversar sobre possíveis vacinas contra a nova doença, e pareciam entusiasmados com a Novavax. Segundo a fundação, essa pequena empresa de biotecnologia tinha chances de desenvolver, em pouco tempo, um imunizante contra o vírus.
Com sede em Gaithersburg, no estado americano de Maryland, a companhia nunca havia levado ao mercado uma única vacina em 33 anos de história. Apesar disso, os executivos demonstraram otimismo com a tecnologia da Novavax, que usa células de mariposas para extrair moléculas fundamentais, num ritmo bem mais acelerado do que as vacinas tradicionais. Numa situação de pandemia, essa agilidade representaria uma tremenda vantagem.
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A Coalizão para Inovação no Enfrentamento de Epidemias (CEPI, na sigla em inglês), onde trabalha Hatchett, acabou investindo US$ 388 milhões no produto da Novavax contra o coronavírus. De posse desse apoio poderoso, a empresa abordou o governo americano de forma agressiva. O esforço para se aproximar das autoridades sanitárias do país foi compensado no início de julho: a Operação Warp Speed (ou “Operação velocidade máxima”, nome dado pela administração Trump à iniciativa para lançar o quanto antes uma imunização) concedeu US$ 1,6 bilhão à Novavax, maior montante registrado até o momento. As ações da empresa subiram 30%, numa guinada drástica para uma marca pouco conhecida que, apenas um ano antes, estivera à beira do precipício.
Um dos principais projetos da companhia – uma vacina contra um vírus mortal para bebês – havia enfrentado dois fracassos num intervalo de três anos. As ações iam tão mal na bolsa que quase foram retiradas do pregão pela Nasdaq. Em busca de dinheiro, a Novavax vendeu suas instalações de produção. No mundinho da biotecnologia de Maryland, começou a circular o boato de que a firma estava prestes a fechar as portas.
A boa fortuna da empresa pode parecer intrigante, considerando seu histórico frágil e o sigilo que envolve a Operação Warp Speed. No entanto, quem conhece o restrito circuito das empresas de biotecnologia afirma que a virada de mesa não surpreende tanto assim. Diante de uma pandemia mortal que está deixando a economia de joelhos, o governo americano aposta todas as fichas em vacinas e tratamentos capazes de permitir um retorno a qualquer coisa que se assemelhe à vida normal.
O governo Trump já sinalizou que deseja investir em várias tecnologias de vacina, e a Novavax – que usa proteínas do coronavírus para ativar a resposta imune – oferece uma estratégia diferente de outras empresas que também receberam uma generosa ajuda federal. A possibilidade de produzir rapidamente milhões de doses foi outro fator que atraiu a atenção das autoridades e da organização de Hatchett. Além disso, o sucesso de um ensaio clínico realizado no primeiro semestre com uma vacina para gripe aumentou a confiança na capacidade da Novavax.
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“Quando há urgência, é preciso estar disposto a assumir riscos financeiros”, diz Hatchett.
Os céticos, porém, enxergam na Novavax o exemplo clássico de uma marca do segundo escalão que sobrevive aos trancos e barrancos entre uma crise e outra, alimentando o preço das próprias ações com promessas de vacinas para novos surtos – que nunca chegam a ser produzidas. Em três décadas de existência, graças a investimentos públicos e privados, a empresa desenvolveu imunizantes experimentais para vírus como os que causam a síndrome respiratória aguda grave (SARS, na sigla em inglês), a síndrome respiratória do Oriente Médio (MERS) e o Ebola. Nenhum deles conseguiu passar da fase inicial de testes, que determina a segurança do produto. Para esses críticos, o fato de que o projeto da Novavax para uma vacina contra o coronavírus não atraiu nenhum gigante da indústria farmacêutica é revelador, mesmo que a empresa venha recebendo quantias cada vez maiores do governo e de entidades filantrópicas.
“O mercado quer acreditar em contos de fadas”, afirma David Maris, sócio da Phalanx Investment Partners e analista com anos de conhecimento sobre a indústria farmacêutica. Na metáfora de Maris, os investidores querem crer que, assim como a Cinderela, as empresas que não foram convidadas para o baile também podem ficar com o príncipe. “Às vezes acontece. Mas é raro”.
Até o momento, o governo dos Estados Unidos prometeu colocar quase US$ 4 bilhões em seis projetos de vacinas, mas esse apoio inclui muitos aspectos confidenciais. As cópias dos contratos assinados entre órgãos federais e as companhias, que foram divulgadas para a imprensa, contêm inúmeros trechos apagados ou riscados, para que não sejam legíveis.
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Na semana passada, respondendo à uma pergunta sobre o que levou o governo a dar mais dinheiro para a Novavax do que para todas as outras, um integrante da equipe de Donald Trump explicou que empresas pequenas precisam de mais investimento federal para manufaturar o produto, se comparadas às grandes farmacêuticas que já têm um histórico de produção em massa de vacinas. O US$ 1,6 bilhão dirigido à Novavax sairá do orçamento dos Departamentos Federais de Saúde e Recursos Humanos e da Defesa, para ser usado no desenvolvimento e na produção da vacina da marca.
De acordo com entrevistas concedidas por diretores atuais ou que já deixaram a companhia, e segundo declarações de autoridades sanitárias globais e americanas, de especialistas em vacinas e analistas de investimentos, a Novavax lançou mão de conexões influentes para fechar esses contratos, fruto de anos de trabalho junto ao governo e à comunidade mundial de saúde.
A Autoridade para Desenvolvimento e Pesquisa Biomédica Avançada, ou BARDA na sigla em inglês, é um dos órgãos que negocia acordos com fabricantes de medicamentos em situações de emergência sanitária. No momento, a BARDA faz parte da força-tarefa federal da Operação Warp Speed. No passado, ela já foi comandada por dois ex-executivos da Novavax. Um deles chegou a registrar uma reclamação formal, afirmando que a empresa teve uma conduta ética questionável ao procurá-lo no primeiro semestre deste ano, em busca de financiamento.
A Novavax também usou seu relacionamento de longa data com a Fundação Gates, que já havia concedido fundos à empresa antes e é uma das entidades mais influentes no universo das vacinas.
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John Trizzino, diretor comercial e financeiro da companhia, afirma que eles não fizeram nada que possa ser considerado inadequado – mas reconhece ter usado a rede de contatos da organização para obter os contratos. “Esse tipo de coisa não surge do nada”, diz ele. “Isso acontece após anos e anos de experiência na indústria, com a construção de relacionamentos sólidos e graças ao fato de já termos colaborado com muitos parceiros”.
Se a Novavax se sair bem, sua história será um grande exemplo de sucesso para uma empresa que patinou por tanto tempo. Fundada em 1987, a companhia sempre operou na periferia do setor farmacêutico, longe de centros biotecnológicos como Boston e San Diego. Embora as vacinas sempre tenham sido o foco da marca, a Novavax já circulou por outras searas, como vitaminas para grávidas e pomadas com estrogênio.
Em 2016 a empresa sofreu um grande revés: um ensaio clínico para tratamento do vírus sincicial respiratório (VSR) em idosos, que já estava em estágio avançado, fracassou – e um terço dos funcionários teve de ser demitido.
Um texto publicado em 2017 no site de empregos e recursos humanos Glassdoor resumiu o clima. “Boliche às sextas, licença-médica ilimitada”, escreveu o autor na coluna reservada aos “prós”. Na coluna dos “contras”, o relato foi o seguinte: “a direção apressou os ensaios clínicos para VSR, os ensaios não deram certo e eles mandaram um monte de gente embora”.
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No entanto, graças a uma ajuda de US$ 89 milhões da Fundação Gates, a Novavax realizou um segundo ensaio clínico para VSR. O objetivo do estudo era testar se grávidas que tomassem a vacina transmitiriam a imunidade para o bebê – que pode ser gravemente atingido pelo vírus.
Mas tampouco esse ensaio deu certo, e mais uma vez a empresa se viu com problemas de caixa. Ela recorreu a um agrupamento de ações, numa tentativa de aumentar o preço dos papéis e evitar a saída da Nasdaq; além disso, vendeu locais de produção para a Catalent por US$ 18 milhões. O acordo com a compradora incluía 100 funcionários, o que equivalia a um terço da folha de pagamento à época.
Para Trizzino, isso faz parte do jogo. “Trabalhar com biotecnologia é um pouco como andar de montanha-russa. Queremos inovar e estamos sempre em busca de oportunidades que não tenham sido aproveitadas pela concorrência”.
Ele conta que a parceria com a Fundação Gates na vacina contra VSR ajudou a estreitar os laços com a entidade. “Eles ficaram conhecendo muito bem a nossa tecnologia”, relembra Trizzino. “Por isso nos apoiaram quando a ameaça do coronavírus se tornou real”.
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A Fundação não quis entrar em detalhes sobre as vacinas candidatas. Entretanto, o diretor do programa da organização para HIV, Emilio Emini, disse num comunicado: “Enxergamos boas perspectivas para uma série de projetos de vacinas contra a COVID-19, incluindo a estratégia da Novavax”.
À semelhança de outras empresas, a Novavax começou a desenvolver a vacina contra o novo vírus em janeiro, quando o genoma foi divulgado pela primeira vez. O processo usa a mesma tecnologia adotada nas vacinas contra VSR e gripe – que transforma células de mariposas em minúsculas fábricas de proteínas de coronavírus. Comparada ao uso de células de camundongos ou outros mamíferos, esta é uma forma mais rápida de produzir grandes quantidades.
“Eu gosto da empresa, gosto da tecnologia que eles oferecem”, diz a médica brasileira radicada nos Estados Unidos Luciana Borio. Luciana comandou a área de enfrentamento de emergências em saúde pública do Conselho Nacional de Segurança, durante o governo Trump, e foi cientista-chefe da Food and Drug Administration (ou FDA, órgão que controla remédios e alimentos) no período Barack Obama. A farmacêutica francesa Sanofi também está desenvolvendo uma vacina contra o coronavírus a partir de insetos, mas ainda não entrou na fase de ensaios clínicos.
Em fevereiro deste ano, a CEPI de Richard Hatchett foi inundada por propostas de desenvolvimento de imunizantes. Para poder agir rápido, a organização avaliou os candidatos com base nos critérios de tempo necessário para chegar à fase de produção e possibilidade de fazer grandes quantidades, para que a vacina seja distribuída pelo mundo.
Assim como a Fundação Gates, Hatchett já conhecia a Novavax. Ele estava na BARDA em 2011, quando a agência fechou um contrato de US$ 179 milhões com a farmacêutica para uma vacina de gripe, capaz de garantir uma resposta nacional rápida a uma epidemia da doença.
Na opinião de Hatchett, a companhia era uma candidata “natural” a financiamento na atual pandemia.
Os contratos da CEPI são confidenciais, mas o diretor esclarece que as decisões sobre distribuição de recursos se baseiam em avaliações independentes externas, em opiniões dada por um comitê consultivo científico e numa análise contábil realizada pela consultoria KPMG.
Ele conta que a CEPI ficou satisfeita em março, algumas semanas depois de fechar um contrato inicial de US$ 4 milhões com a Novavax, quando a empresa de Maryland anunciou o sucesso de um ensaio clínico avançado para a vacina de gripe. Foi o primeiro grande êxito da companhia e uma importante validação para sua tecnologia de desenvolvimento.
“Esse resultado positivo foi recebido com alívio”, afirma Hatchett. Em maio, a Coalizão aumentou o apoio e fechou um novo contrato com a Novavax, dessa vez no valor de US$ 384 milhões.
Para a farmacêutica, esses acordos foram vitais. Ela já havia procurado a entidade filantrópica com insistência em busca de apoio financeiro, sem sucesso.
Ansioso para falar sobre a nova vacina, Stanley Ercko, CEO da Novavax, solicitou em abril uma reunião com Rick Bright, ex-diretor da BARDA que também havia sido chefe de pesquisa da empresa de biotecnologia entre 2006 e 2008. Quando foi procurado por Ercko, Bright era vice-secretário assistente do Departamento Federal de Saúde e Recursos Humanos (HHS). O relato sobre o pedido de encontro feito pela Novavax surgiu numa denúncia registrada por Bright posteriormente.
No documento, o denunciante afirma que se recusou a encontrar o CEO da empresa porque discutir o assunto no momento em que o pedido de aprovação da vacina está sendo avaliado viola uma lei federal – já que a conversa entre as partes poderia influenciar um processo que, em tese, deve considerar apenas questões científicas.
Três dias depois, a empresa voltou à carga, desta vez com o então chefe de Bright, Robert Kadlec – secretário assistente de enfrentamento e resposta do HHS. A princípio Kadlec respondeu que estava “ansioso para a reunião”, conforme atestam e-mails obtidos pelo New York Times. Mas uma porta-voz do órgão declarou que o secretário não chegou a se reunir com representantes da Novavax.
Bright foi retirado da BARDA em abril, e registrou sua denúncia após afirmar que há anos se manifestava contra nepotismo e contratos duvidosos no órgão.
O contato entre a Novavax e o HHS deixou Steven Schooner – professor de Direito da Universidade George Washington e especialista em licitações e compras públicas – com a pulga atrás da orelha.
“Uma vacina para combater uma pandemia é um assunto extremamente sério”, diz ele. “A análise para oferecer financiamento precisa ser feita exclusivamente com base em méritos científicos, e não em quem conhece quem ou em quem está disposto a pagar propina ou em quem fez mais lobby ao longo do processo”.
Trizzino alega que a empresa não fez nada de errado: “Fizemos o que consideramos ser prudente e razoável diante das circunstâncias de uma pandemia que exige ação rápida”.
Ao perceber que a conversa com a BARDA não avançaria, a Novavax voltou sua atenção para o Departamento de Defesa.
Tendo em mãos o segundo contrato com a CEPI, a empresa finalmente conseguiu “avançar mais e mais”, nas palavras de Trizzino.
Em junho, o Departamento de Defesa concedeu US$ 60 milhões à farmacêutica. “E a partir daí a Operação Warp Speed assumiu a coordenação”, diz o CFO.
Robin Robinson, diretor da divisão de vacinas da Novavax até 2004 (quando foi contratado pela BARDA para ser chefe do setor de influenza), afirma: “os resultados mostrados por eles são animadores e promissores”.
Robinson foi um dos responsáveis pelo desenvolvimento de uma versão inicial da tecnologia de vacinas da empresa, e trabalhou como consultor da Novavax na vacina de gripe. “Acredito que o produto deles vai fazer parte do círculo de vencedores no ano que vem”.
Com dois grandes contratos na mão, a Novavax precisa equilibrar uma dupla de investidores poderosos – e possivelmente conflitantes. A vacina está na fase dos ensaios de segurança, e espera-se que os resultados saiam ainda em julho. O plano é começar a Fase III (que comprova a eficácia do produto) em meados do segundo semestre, e divulgar novos dados até o final do ano. Se a vacina for bem-sucedida, a empresa garante que vai fornecer 100 milhões de doses nos Estados Unidos, suficientes para imunizar pelo menos 50 milhões de cidadãos americanos. Já no acordo assinado com a CEPI, a Novavax se compromete a oferecer um número não anunciado de doses para países de baixa renda.
A companhia assegura que é capaz de fazer as duas coisas, produzindo a vacina simultaneamente nos Estados Unidos, na Europa e na Ásia. As primeiras doses, que estão sendo usadas no ensaio clínico, foram feitas por uma fábrica terceirizada – a Emergent BioSolutions, também de Maryland. No entanto, a Novavax diz que ainda não escolheu a companhia americana que ficaria responsável pela produção em larga escala.
Recentemente ela comprou uma fábrica na República Tcheca, e pretende contratar outros produtores para fornecer para o resto do mundo. A Novavax declara ter 360 funcionários no momento, já contando os empregados da nova fábrica.
“Tudo está muito bem coordenado, a gente sabe o que está fazendo”, afirma Trizzino.
Mas o processo de desenvolvimento de uma vacina é altamente imprevisível, e eventuais atrasos costumam ficar entre quatro paredes. Por isso, é impossível prever até onde a empresa vai chegar.
“A Novavax é a queridinha do momento nos Estados Unidos”, afirma Kate Elder, consultora sênior de
políticas para vacinas da organização Médicos Sem Fronteiras. “A meu ver, isso é apenas uma ampliação das arriscadas apostas do governo, com muito dinheiro público e pouca transparência”.
(Tradução: Beatriz Velloso)
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