- Wendy de Oliveira, comunicadora, tinha uma família grande e unida. Somente por parte de pai, eram oito tios, que enchiam a casa da avó, Fernanda (nome fictício), durante os almoços de domingo
- Entretanto, com o falecimento da matriarca em 2020, os laços familiares foram severamente abalados
- A idosa deixou como herança uma propriedade avaliada em R$ 800 mil e localizada em Diadema, na Grande São Paulo
A comunicadora Wendy de Oliveira tinha uma família grande e unida. Somente por parte de pai, oito tios enchiam a casa da avó Fernanda (nome fictício) durante os almoços de domingo. Entretanto, com o falecimento da matriarca, em 2020, os laços familiares foram severamente abalados. A idosa deixou como herança uma propriedade avaliada em R$ 800 mil em Diadema, na Grande São Paulo. Para tentar evitar uma briga entre os filhos e economizar com taxas de inventário, ela passou, em vida, o bem para o nome das nove pessoas que iriam recebê-lo como herança. Em tese, cada um teria direito a cerca de R$ 88,8 mil com a venda do imóvel.
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Logo após o óbito, as discussões começaram em torno das dívidas de Imposto sobre a Propriedade Predial e Territorial Urbana (IPTU). Naquela época, a casa acumulava cerca de R$ 50 mil em débitos de IPTU – nos anos anteriores, apenas um dos tios de Oliveira, que usava os fundos da casa para fins comerciais, era o responsável pelo pagamento. Após ter problemas financeiros, ele parou de arcar com o imposto, mas não contou a ninguém. A dívida acumulou e só veio à tona após a morte da avó de Oliveira.
“Na hora de negociar o valor entre os nove e pagar o imposto, alguns não concordaram com a divisão entre todos. Uma parte achava que quem gerou a dívida que pagasse, outros que só quem pagasse o imposto que teria direito ao imóvel”, diz Oliveira. No final, imperou o que diz a lei. Todos os herdeiros têm direito a uma fatia do bem deixado, pagando ou não o imposto, mas todos têm a responsabilidade sobre a dívida. “No entanto, se um dos herdeiros residir no imóvel, ele será responsável pelo pagamento do imposto enquanto lá residir”, ressaltam Marina Dinamarco e Luiza Mendonça, sócias do escritório Marina Dinamarco – Direito de Família e Sucessões.
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Caso os herdeiros não façam o pagamento, o imóvel herdado vai a leilão judicial para que, uma vez arrematado, o passivo fiscal seja quitado. No caso de Oliveira, para evitar a execução da casa, as dívidas tributárias foram parceladas até o final de 2028. Em tese, nesse prazo, os nove herdeiros deveriam dividir a responsabilidade pelo pagamento mensal de R$ 620 à prefeitura. Ou seja, cada um deles deveria contribuir com R$ 70.
Entretanto, a divisão igualitária funcionou apenas nas primeiras parcelas. Hoje, somente a comunicadora (representando o pai dela) e duas tias fazem o pagamento. Fabio Botelho Egas, sócio do Botelho Galvão Advogados, especializado em direito sucessório e de família, afirma que nesses casos, os herdeiros que desembolsaram recursos próprios para o pagamento do imposto podem ser reembolsados, na ocasião da venda. “Se, em vida, algum herdeiro tiver pago com recursos seus algum valor, ele poderá ser ressarcido pelo espólio (conjunto de bens deixados pelo falecido)”, diz Botelho. Entre discussões e acusações, a decisão de parcelar os débitos tributários demorou três anos para ser aceita por todas as partes. E o imbróglio custou a união da família de Oliveira.
“Antes da minha avó morrer, fazíamos festas, almoços e encontros. Embora tivesse uma ou outra briga, tudo ficava bem e todos se falavam”, diz Oliveira. “Hoje, meus tios quase não se falam e brigam frequentemente, ainda mais quando chega o dia de pagar o IPTU.”
Como evitar conflitos com heranças
O fato de a avó de Oliveira ter feito, em vida, a transferência do imóvel para o nome dos filhos, poupou a família de conflitos ainda mais graves. Isto porque a matriarca deixou claro e documentado, antecipadamente, a sua vontade sobre a sucessão daquele bem. Além disso, também evitou que os descendentes tivessem gastos maiores para fazer a divisão do espólio.
Quando a transferência é feita em vida, aquele bem não entra em um possível inventário, por exemplo. Essa transmissão pode ser feita tanto com efeito imediato, quanto na modalidade de “doação com reserva de usufruto”, em que é feita a transferência do bem para um ou mais herdeiros, mas o patriarca/matriarca possui o direito de morar naquele imóvel até o fim da vida.
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Já quando não há doações de herança feitas em vida, o bem precisará ser listado em um “inventário”, processo em que é formalizada a divisão do patrimônio de uma pessoa falecida entre os herdeiros. Para fazer um inventário, os custos com taxas e honorários advocatícios podem chegar a 20% dos bens. Ou seja, em cerca de R$ 160 mil, no caso do imóvel disputado entre os nove irmãos.
Michelle Morkoski, head de atendimento jurídico da Neela Gestão de Patrimônio, chama a atenção para o fato de que os gastos podem ser maiores ou menores, a depender da modalidade do inventário. Por exemplo, quando todos os herdeiros são maiores e capazes e há consenso sobre a partilha, o inventário pode ser extrajudicial. Nesta categoria, há gastos com a escritura do inventário, emolumentos cartoriais e o Imposto de Transmissão Causa Mortis e Doação (ITCMD), o popular “imposto sobre herança“.
Tendo menores ou incapazes entre os herdeiros ou quando não há consenso, é preciso fazer um inventário judicial. “Neste caso, os custos abrangem o ITCDM – que depende do valor total da herança -, escritura, custas judiciais e emolumentos do cartório”, afirma Morkoski. Atualmente, na maioria dos estados, o ITCMD é progressivo e possui um teto de 8%. Isto significa que, quanto maior a herança, maior a alíquota que os inventariantes precisarão arcar.
A confecção de um testamento para a herança também é aconselhável para quem quer evitar que herdeiros briguem no futuro. Neste documento, que é feito em cartório e custa R$ 2.265,41 no estado de São Paulo, o proprietário dos bens descreve como quer distribuir o patrimônio entre os herdeiros. Entretanto, essa distribuição deve respeitar o que está previsto em lei. Ou seja, pelo menos 50% do espólio precisa, necessariamente, ser deixado para os “herdeiros necessários” – os descendentes (filhos, netos e bisnetos), ascendentes (pais, avós e bisavós) e o cônjuge.
“Já aquela pessoa que não possuir nenhum herdeiro, a disposição patrimonial poderá ser completa, inclusive com a transferência da totalidade do patrimônio para qualquer terceiro”, diz Jorge Augusto Nascimento, sócio do escritório DMGSA – Domingues Sociedade de Advogados.
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Para famílias com muitos bens, a criação de uma holding familiar pode ser uma solução. Nessa estrutura, já estarão previstas todas as regras de sucessão do espólio e a resolução de eventuais disputas. De qualquer forma, o diálogo entre os patriarcas ou matriarcas com os herdeiros é essencial no processo de destinação dos bens.
“O ideal é que os herdeiros se reúnam com o responsável pela constituição do acervo patrimonial a ser dividido e, ainda em vida, planejem com o auxilio de um especialista em sucessões, a melhor estrutura e alternativas, de modo a viabilizar todo o processo de forma segura e economicamente mais interessante”, afirma Morkoski, head de atendimento jurídico da Neela Gestão de Patrimônio.
O que acontece quando o testamento não foi realizado
Apesar das diversas estruturas existentes para facilitar sucessões, os casos em que não há transferência em vida ou testamento são bastante comuns – e costumam gerar brechas ainda maiores para brigas em família.
A autônoma Adriana Alves vive esse tipo de conflito. A sogra dela faleceu em 2015 e deixou um imóvel como espólio, mas não fez testamento ou doações em vida para os herdeiros e agora os filhos disputam a herança. Alves mora desde 1998 com o marido e um dos cunhados na propriedade. Contudo, um terceiro herdeiro da matriarca, que possui casa própria, está exigindo uma parte do bem. Ou seja, quer vender a casa deixada pela mãe, que está ocupada por Alves, o marido dela e um dos irmãos, há 26 anos. Como o apartamento foi adquirido via CDHU (Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano), a escritura ainda não saiu. “Não há como fazer inventário sem a escritura”, aponta a autônoma. De fato, a falta da escritura atrasa uma possível ação para removê-los do imóvel, contudo, não impede a abertura do inventário.
Uma vez iniciado o processo de inventário, é possível fazer a regularização da propriedade por meio da comprovação da posse da matriarca via documentos de compra e venda, por exemplo, ainda que não haja escritura. Posteriormente, o herdeiro que está reivindicando a herança poderá notificar os ocupantes e pedir a desocupação do apartamento.
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Na hipótese de o ocupante se negar a sair, os demais herdeiros poderão, até mesmo, pedir na justiça a fixação de um pagamento de aluguel, aponta Morkoski, head de atendimento jurídico da Neela Gestão de Patrimônio.
Chegar a esse extremo — de notificar um ente querido e fazê-lo sair “à força” de um imóvel de herança — é bastante desgastante para as relações familiares. Esse tipo de conduta pode ser evitada, por exemplo, com a transferência dos bens em vida. Se a proprietária tivesse transferido, em vida, o bem a Alves e o marido, que moravam junto a ela há mais de duas décadas e não tinham casa própria, não haveria discussão sobre a sucessão do imóvel atualmente.
A confecção de um testamento válido também poderia evitar que os próprios herdeiros tivessem que chegar a um consenso sobre qual fim dar aos bens ou às dívidas que envolvem aquele patrimônio, por exemplo. Falar sobre herança com os patriarcas ainda vivos costuma ser um tema desconfortável para as famílias, mas é necessário para evitar a destruição dos laços fraternos no futuro, por mera discordância.
“Boa parte das brigas por herança ocorre por ausência de clareza em relação a quais eram as vontades dos patriarcas quanto à divisão patrimonial. O testamento e as doações em vida preenchem muito bem esse espaço, registrando, por escrito, o que pai e mãe entendem como a melhor solução para a partilha e gerenciamento do patrimônio”, ressalta Jorge Augusto Nascimento, sócio da Domingues Advogados Associados.