- O E-Investidor recebeu o relato de um leitor que reivindica o seu direito de proprietário sobre um imóvel que é alvo de um processo de usucapião
- Enviamos o relato para duas advogadas que comentam sobre os pontos apresentados e quais devem ser os procedimentos a serem seguidos
- Caso seja comprovado que posse não configura usucapião, as pessoas que ocupam o imóvel devem deixá-lo e ainda arcar com os custos processuais da ação
Histórias que contamos por aqui, como a da enfermeira que conquistou um apartamento de luxo, depois de viver 20 anos como dona dele, geram curiosidade e até uma certa inveja. Mas quais seriam os sentimentos — e recomendações jurídicas — se o ponto de vista fosse de um proprietário que tem o seu imóvel alvo de um processo de usucapião?
O E-Investidor recebeu o relato de Josias Portinari*, que é autor em um processo de imissão de posse, feito quando um proprietário reivindica o seu direito sobre um bem. Morador de Santa Catarina, o imóvel alvo do processo fica em uma cidade litorânea do Rio Grande do Sul. A sua dor de cabeça começou em 2010, ao descobrir que moradores locais estavam vivendo na sua casa de férias.
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Portinari chegou a registrar boletim de ocorrência por invasão, porém a polícia não localizou ninguém na propriedade. Cinco anos depois, uma pessoa entrou com usucapião no imóvel, alegando ter adquirido a casa em 2012. “Ela diz que comprou a minha casa de outra pessoa, com contrato em tabelionato. O advogado dela usa um suposto tempo de posse de 15 anos, considerando dois documentos: de quem vendeu e de quem comprou”, aponta.
Ao consultar os memoriais do processo, ele afirma que não há as suas assinaturas nos contratos. Além disso, descobriu que o imóvel estava com a titularidade sendo repassada há mais tempo do que imaginava. Veja abaixo:
- Pessoa A vendeu o imóvel de Josias para a Pessoa B em 2008, com reconhecimento de firma apenas do vendedor e sem o selo de autenticidade do tabelião de notas;
- Pessoa B vendeu o imóvel de Josias para Verônica* em 2012, sendo que tanto o vendedor quanto a compradora reconheceram firma do contrato e há selo do tabelionato;
- Portinari entrou com imissão de posse em 2015 e a defesa de Verônica passou a reivindicar usucapião.
Por meio da defensoria pública que ele tem o seu direito de proprietário resguardado, e alega que não havia sido informado da existência do primeiro contrato de venda feita sobre seu imóvel. “Mandei um e-mail ao tabelião e descobri que não tem registro no nome da Pessoa A e Pessoa B sobre a venda de 2008”, alega.
Quando um proprietário pode deixar de ser dono do seu próprio imóvel?
Ao E-Investidor, Bárbara Cavalieri, sócia do Chalfin, Goldberg e Vainboim Advogados, explica que o principal requisito ao direito de usucapir é a prova de ocupação do bem, pelo tempo necessário, sem qualquer oposição por parte dos proprietários. “Tudo isso, somado à comprovação por parte dos ocupantes de utilização para sua moradia e de sua família”, acrescenta.
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No entanto, Portinari afirma que Verônica é moradora de Porto Alegre, e que utiliza a casa no litoral gaúcho para férias e lazer, não sendo a sua principal moradia. Ele não tem informação se a ré tem outro imóvel em seu nome ou se existe alguma relação dela com a Pessoa A e a Pessoa B.
Ainda assim, Cavalieri frisa que cabe aos proprietários demonstrarem que o bem estava efetivamente em sua posse e conservação, contrapondo evidências apresentadas em contrário. “Para tanto, podem ser apresentados comprovantes de despesas correntes com tributos e conservação do imóvel, assim como fotos que demonstrem sua utilização.”
Além disso, a advogada aponta que, sobre a alegação de Portinari, de que há documentos falsos apresentados na defesa da requerente do usucapião, é possível que a sua defesa solicite o requerimento de prova técnica pericial. “Para a perícia, será indicado um profissional de confiança do juízo, que analisará selos e assinaturas existentes na documentação, sendo ainda realizadas diligências junto aos cartórios indicados como responsáveis pelas lavraturas dos contratos indicados.”
No entanto, vale pontuar que a prova pericial será, em regra, inicialmente custeada por aquele que a requerer. Depois que o processo for encerrado, o pagamento final será de responsabilidade financeira da parte vencida.
Quais são os direitos do proprietário sobre um imóvel alvo de usucapião?
Embora o seu imóvel esteja sendo ocupado por outra pessoa, Portinari ainda tem alguns direitos sobre o bem, mesmo com o processo de usucapião em curso. Daniela Poli Vlavianos, sócia do escritório Poli Advogados & Associados, cita quatro pontos. Confira abaixo.
- Propriedade registrada: “O proprietário que possui o imóvel devidamente registrado em seu nome no Cartório de Registro de Imóveis mantém o direito de propriedade enquanto a sentença de usucapião não transitar em julgado. A mera posse por parte de terceiros não anula a propriedade registrada sem o devido processo legal”;
- Defesa contra a usucapião: “O proprietário pode contestar a usucapião, demonstrando que não houve posse contínua, mansa e pacífica, ou que a posse não foi exercida de forma ininterrupta durante o período exigido por lei. No caso de Portinari, a interrupção da posse em 2010 (quando fez o boletim de ocorrência) é um argumento forte”;
- Impugnação de documentos falsos: “O proprietário tem o direito de impugnar quaisquer documentos que considere fraudulentos, como contratos de compra e venda falsificados, e pode requerer a perícia dos mesmos”;
- Direito à reintegração de posse: “Caso consiga comprovar a falsidade dos documentos e a inexistência de justo título ou boa-fé por parte dos posseiros, o proprietário pode requerer a reintegração de posse do bem”.
Sobre a possível inserção de documentos falsos apresentados por Verônica, que também pode ter sido vítima da Pessoa A e da Pessoa B, Vlavianos afirma que constitui uma questão grave e pode configurar fraude processual. “Ao trazer essa questão à juíza, você está levantando um fato novo e relevante, que deve ser considerado no julgamento, mesmo após a fase de memoriais.”
Segundo a advogada, como o documento falso foi utilizado nos autos, há um “vício” que pode comprometer toda a defesa da ré. “A juíza, ao tomar conhecimento de um fato dessa magnitude, tem a prerrogativa de agir de ofício, isto é, por iniciativa própria, determinar a verificação da autenticidade dos documentos, especialmente quando o fato está comprovado por um documento oficial (no caso, o ofício do tabelião).”
Por isso, ela indica que os próximos passos que o reclamante deve seguir são:
- Formalizar a denúncia de falsificação: mesmo juiz e defensor sendo comunicados sobre o fato, deve-se formalizar por meio de uma petição nos autos do processo, destacando que a documentação apresentada pela parte adversa é falsificada, anexando o ofício do tabelião como prova;
- Requerer incidente de falsidade: o defensor público deve solicitar a instauração de um incidente de falsidade (artigos 430 e seguintes do CPC), que visa apurar a veracidade do documento identificado como falso, podendo levar à anulação do documento e à responsabilização da parte que o apresentou;
- Manter a comunicação com o registro de imóveis e tabelionato: Portinari deve continuar em contato com o Cartório de Registro de Imóveis e o tabelionato, coletando toda a documentação necessária para comprovar que o contrato de 2008 foi falsificado.
Se o usucapião for negado, como é feito o despejo de quem ocupava o imóvel?
Se por acaso Portinari conseguir comprovar todas as suas alegações, e a usucapião seja julgada improcedente, os ocupantes não terão direito de propriedade sobre o bem. “O meio legal para remoção da família que está na posse indevida é a ação de reintegração de posse”, explica Cavalieri, do Chalfin, Goldberg e Vainboim Advogados.
Nesse caso, os legítimos proprietários devem demonstrar a ocupação irregular, solicitando medida judicial para que a posse lhe seja devolvida. “Um oficial de justiça diligenciará ao local e promoverá a remoção dos ocupantes irregulares e seus pertences, devolvendo assim a posse aos proprietários.”
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Mesmo assim, como aponta Vlavianos, do Poli Advogados & Associados, o juiz concede um prazo razoável para desocupação voluntária, que pode variar conforme o entendimento do magistrado. “Se a família não desocupar o imóvel no prazo determinado, poderá ser expedido um mandado de despejo com o uso de força policial, se necessário.”
Além disso, caso haja danos materiais ao imóvel ou prejuízo decorrente da ocupação, o proprietário pode pleitear uma indenização por perdas e danos em função da posse indevida. “A comprovação da fraude, e a consequente anulação dos contratos falsos, é essencial para a resolução do processo de usucapião, favorecendo a reintegração de posse do imóvel”, finaliza Vlavianos.
*Os nomes foram trocados a fim de manter o sigilo das fontes e também não causar interferências no devido processo legal em curso