- A pandemia do coronavírus é um evento não previsto, que acaba por mudar a busca corriqueira para determinados itens de consumo
- Em situações excepcionais, as pessoas estão dispostas a pagar mais pelas mesmas quantidades de bens
- Quanto mais demorar para o comércio reabrir, maior será a extensão para os setores que vão sofrer com tudo isso
(Murilo Basso, especial para o E-Investidor) – No que hoje parece o longínquo dia 26 de fevereiro, o Brasil confirmou seu primeiro caso de coronavírus. Desde então, aos poucos, medidas começaram a ser tomadas pelos governos locais, como o isolamento social, a suspensão de aulas e a adoção do home office. Junto a isso, outro fenômeno foi observado logo que estourou a crise: a busca desenfreada por diversos produtos e consequente aumento excessivo nos preços de vários itens. E isso não foi verificado apenas quanto a artigos considerados essenciais para o momento, como álcool gel 70%, máscaras de proteção e termômetros.
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Ainda que os estoques e preços estejam, de certa forma, estabilizados no momento, assim que o coronavírus ganhou contornos mais sérios no país, cerca de dois meses atrás, os consumidores se desesperaram e correram para as lojas. Pesquisa da Neogrid, empresa de tecnologia que monitora os pedidos do varejo para indústria, realizada em 20 mil supermercados brasileiros, mostrou que o índice de falta de itens nas prateleiras das lojas chegou a 11,3% em meados de março – quando o índice ultrapassa os 10% é considerado muito alto. Quanto aos alimentos, destaque para massas, açúcar e leite (em pó e longa vida). Ainda, coleta de preços realizada pela Fundação Getúlio Vargas (FGV) mostrou que 20 peças da cesta básica tiveram reajuste médio de 1,64% na penúltima semana de março contra 0,19% no início do mês.
Em relação aos produtos de higiene considerados essenciais, levantamento do Instituto de Ciência, Tecnologia e Qualidade (ICTQ) realizado entre 18 e 20 de março em 540 farmácias de 18 capitais brasileiras mostrou variação de mais de 7.000% nos preços desses artigos em alguns casos. Uma caixa de máscaras com 50 unidades, por exemplo, foi encontrada por R$ 5,40 em um estabelecimento do Rio de Janeiro, enquanto em Manaus o mesmo item era vendido por R$ 425. Além do aumento nos preços, no mesmo período foi registrado esgotamento pontual de produtos, em especial de álcool gel.
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Professor do Insper, Fernando Ribeiro Leite Neto explica que a pandemia do coronavírus se encaixa no que a Economia chama de “choque exógeno”, termo usado para definir um evento não previsto, que acaba por mudar a busca corriqueira para determinados itens de consumo – é a “economia de deslocamento da demanda”. E a busca desenfreada acaba por, consequentemente, esgotar os estoques.
Em casos excepcionais, as pessoas estão dispostas a pagar mais pelas mesmas quantidades de bens ou a comprar menos, mas pelo mesmo preço de antes. Apesar dos números absurdos verificados no Brasil, o professor afirma que é ilusão pensar que o aumento excessivo de preços está vinculado ao “jeitinho brasileiro”. Segundo ele, situações assim poderiam ser verificadas em qualquer parte do mundo, em maior ou menor grau, sendo raras as exceções.
“Quando houve um furacão [Matthew, em 2016] na Flórida, nos Estados Unidos, os preços da gasolina e da água explodiram, assim como o valor do quarto de hotel nas cidades vizinhas, que subiu entre 500% e 600%. É raro ocorrer o contrário”, diz Leite Neto.
Não é preciso voltar muito ao passado. Em abril, o Inside Edition, semanário jornalístico da CBS, encontrou, na região de Nova York, tubos de gel antisséptico de aproximadamente 415 mililitros(mL) sendo vendidos a US$ 22 (cerca de R$ 130 com o dólar a R$ 5,90). Dois meses antes, era possível comprar uma embalagem com o dobro dessa quantidade por US$ 7. Já na Amazon dos EUA, há vendedores que oferecem 300 mL de álcool gel 70% por US$ 16,99 (cerca de R$ 100).
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Leite Neto complementa dizendo que não é o caso de apontar suposta má-fé dos comerciantes, pois a figura do senhorzinho dono de uma pequena farmácia de rua praticamente não existe mais. O que se tem hoje são grandes redes de drogarias e supermercados, que fazem parte de uma cadeia de produção e de fornecimento muito mais ampla. Se a loja estiver vendendo um litro de álcool gel 500% mais caro do que o preço normalmente praticado, muito provavelmente é pelo fato de que o fornecedor cobrou de 200% a 300% a mais do que costuma cobrar.
No mesmo sentido, André Fernandes Lima, professor do curso de Ciências Econômicas da Universidade Presbiteriana Mackenzie, comenta se tratar de uma característica própria do sistema capitalista, no qual os preços têm a possibilidade de flutuar à medida em que a demanda cresce ou diminui. É preciso ficar atentar, contudo, aos indivíduos que buscam levar vantagem de forma indiscriminada num cenário de anormalidade como o que se vive agora.
“Na Internet, há pessoas vendendo máscaras que não têm, aplicando golpes, cometendo crimes, enquanto outros falsificam álcool gel usando produtos não adequados. Isso é criminoso. Acredito que esse é um momento para refletirmos. Talvez a situação atual nos mostre que pensar apenas no próprio umbigo não é a estratégia mais adequada para que todos continuemos vivos e tendo acesso a tudo. Talvez a lição que possamos tirar durante essa pandemia tenha a ver com o fato de que não dá para
pensar somente em si”, diz Lima.
Os preços abusivos praticados no atual cenário têm levado os Procons dos estados a fiscalizar estabelecimentos. No Paraná, os consumidores conseguem fazer denúncias em formulário disponibilizado no site oficial do órgão, enquanto em São Paulo é possível denunciar por meio das redes sociais, marcando os perfis da instituição nas publicações de denúncia, para citar apenas alguns.
Intervenção estatal?
Leite Neto diz que a intervenção estatal é uma discussão clássica envolvendo Ética e Economia, sendo costumeiramente levantada em cenários de anormalidade, de eventos raros e não previstos. Para ele, não seria ético, tampouco justo, que o acesso a bens necessários no momento, como remédios, fosse dado apenas pelo caráter da renda. O pesquisador afirma ainda que esse acesso deve ser embasado na igualdade e na dignidade, ancoradas no direito à saúde. Nesses casos, portanto, ele defende que haja
um controle de preços.
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Já Lima opina no sentido de que não há como o mercado atingir o equilíbrio por si só, sem que haja qualquer tipo de regulação por parte do Estado. “A minha percepção iria para um lado mais keynesiano [teoria consolidada com o trabalho do economista inglês John Maynard Keynes] de que o governo deve, sim, regular. A história já mostrou que o mercado não atinge o equilíbrio por si só. A crise de 1929 foi um exemplo disso”.
Setores mais afetados
A crise causada pela pandemia da covid-19 acabou por afetar negativamente diversos segmentos, em especial o do comércio de rua e o de serviços, mas também lançou luz sobre outros, como o e-commerce e o delivery – não só de comida, mas de compras de supermercado e remédios. É inevitável, entretanto, que todos os setores passem por um momento de desaceleração. Isso teria a ver com o comportamento do consumidor.
O pesquisador Fernando Ribeiro Leite Neto cita como exemplo os aplicativos de entrega de comida. Por enquanto, eles seguem funcionando, mas e quando parte da renda dos consumidores começar a minguar, caso o isolamento se prolongue e as empresas lancem cada vez mais mão de mecanismos como o acordo pela redução salarial? A tendência é que os negócios de delivery também sejam impactados.
“Quanto mais demorar para o comércio reabrir, maior será a extensão para os setores que vão sofrer com tudo isso. É difícil fazer um prognóstico mais aprofundado, porque a situação muda muito, o tempo todo. A minha impressão é a de que mais cedo do que se imagina os estabelecimentos vão voltar a abrir. Padarias, salões de cabeleireiro, pizzarias, etc vão estar abertos. O que eu temo é o comportamento do consumidor. Não sei quantos vão estar disponíveis. Sempre haverá alguém disposto a comprar, mas haverá menos pessoas dispostas a ter contato com os outros, mesmo com o uso de máscaras e respeitando o distanciamento mínimo”, diz Leite Neto.
O que se pode afirmar com certeza é que ninguém sairá ileso da crise e que novos hábitos serão adotados. André Fernandes Lima cita como exemplo o teletrabalho. Antes visto com receio por muitas empresas, a tendência é que seja adotado cada vez mais pelas organizações, que no momento conseguem ver a aplicabilidade da medida na prática. O mesmo vale para o ensino online.
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“Eu mesmo sou professor universitários há alguns anos e nunca tinha ministrado uma aula online. De repente, do dia para a noite, me vi ensinando assim. E percebi que é uma prática interessante. Dá para trabalhar em cima disso de uma maneira positiva. Há setores que conseguem reorganizar suas atividades sem um prejuízo grande. É possível identificar oportunidades de inovar, de mudar a forma de realizar seu trabalho e, mesmo assim, gerar os resultados econômicos esperados”, afirma o professor do Mackenzie.
Lições para o futuro
Empreender sempre envolve riscos. É uma característica intrínseca do negócio. A crise do coronavírus, porém, deixa lições valiosas para o futuro. O ideal é que sempre haja uma reserva de emergência, para que a empresa seja o menos impactada possível em cenários de crise. Mas nem sempre isso é possível.
Lima afirma ainda que ter um planejamento adequado e um controle das finanças e das informações de caráter operacional da empresa é crucial para que seja possível enfrentar uma crise como a da covid-19 de maneira mais tranquila ou, ao menos, com menos intempéries.
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“O que toda empresa deve ter são informações sobre o seu negócio. Saber a necessidade de capital de giro, o ciclo de conversão de caixa, quanto eu tenho de estoque para vender e quanto ele deve durar. Estar municiado de informações fidedignas e relevantes para a gestão do negócio é uma forma melhor de enfrentar uma crise”, conclui.