- Brasil pode ser o primeiro país a começar a diminuir a taxa de juros, mas isso depende de mudança de postura do Governo Lula
- Arcabouço fiscal sólido e reforma tributária dariam base para o Brasil retomar o corte de juros e aliviar o peso sobre o Governo e as famílias
- Brasil enfrenta uma concorrência de países como China, Turquia e Índia que dá margem para assumirmos protagonismo
Passados 100 dias do governo Lula, uma conclusão parece clara: a vida é dura. Gostaríamos de cortar a taxa básica de juros, mas o Banco Central é independente e as expectativas de inflação estão desancoradas. Adoraríamos gastar mais; não há dinheiro. Precisaríamos de mais investimento público; o orçamento destina 85% dos recursos a dispêndios com pessoas. O cobertor é curto. Tentamos mandar algumas MPs, o Congresso força uma espécie de semi-presidencialismo.
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Herdou-se um país muito dividido, com populismo fiscal ao final do mandato anterior e aleijado do capital internacional pelo negacionismo à ciência e pela percepção de má gestão de nossos recursos naturais, tão celebrados lá fora, sobretudo na Europa. Seria difícil uma reconstrução tão rápida. Crítica pertinente.
Contudo, há o contra-argumento: havia uma bela oportunidade para um caminho de pacificação, a partir de um presidente popular e que já governara o país sob princípios da ortodoxia da política econômica. Retomaríamos o respeito pela ciência — biológica e econômica; cloroquina não combate a covid, nem abre caminho para corte da Selic —, voltaríamos a ser aceitos em comitês de investimentos globais e reduziríamos o discurso de ódio, com chances de voltarmos à nossa vitalidade iorubá tão característica de nossos Trópicos Utópicos, para usar uma expressão de Eduardo Giannetti.
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Segundo essa corrente, Lula chegaria como uma espécie de Mandela sul-americano, além do bem e do mal, sem revanchismo, eleito pela Frente Ampla e capaz de representá-la em sua magnitude e abrangência. Teríamos, sim, um governo de esquerda, com suas pautas progressistas e foco em gastos sociais, mas sem eleger inimigos de maneira maniqueísta. Quem pensaria em brigar com o mercado se isso traria dólar e juros mais altos, atirando no próprio pé?
Pode agora parecer ingenuidade ou sonho adolescente, mas o exemplo mexicano mostra que seria possível. Lula goza de amplo respeito da comunidade internacional, tem a simpatia de todo capitalismo woke e poderia ser facilmente abraçado pela Faria Lima.
O ministro Haddad, em que pese a reticência inicial do mercado financeiro, poderia se alinhar à ortodoxia fiscal, como, aliás, tem feito, uma surpresa positiva para muitos. Uma pena que, ao menos até agora, tenha funcionado como exército de um homem só.
O risco é alto e o momento não permite aventuras. Incorremos num déficit público estrutural da ordem de 2% do PIB. A inflação é alta e persistente, enquanto as expectativas insistem em não ceder na velocidade desejada. Os canais de crédito estão entupidos, na esfera doméstica por conta, sobretudo, do evento Americanas e, no exterior, pelos problemas com os bancos regionais nos EUA e com o Credit Suisse na Europa (sabe lá Deus quem é o próximo da fila). Há sinais reais de um princípio de credit crunch no Brasil.
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Nesses momentos, o risco de ruptura existe e insistir na rota inadequada pode trazer consequências mais rápidas e intensas do que nossas cabeças lineares gostariam de supor. Se o México é exemplo virtuoso, a Argentina ilustra o que devemos evitar. Subitamente, variáveis nominais deixam de ter importância, pois a moeda perde sua característica de reserva de valor.
Seja pela maré das circunstâncias, ainda há chance de um recomeço. Parece haver um consenso na sociedade sobre a necessidade de desenho de um sólido e crível arcabouço fiscal, seguido de uma reforma tributária em prol da melhoria do ambiente de negócios.
Se for o caso, dados os sinais de crise de crédito e a desaceleração da economia, o caminho poderia se abrir para corte na Selic. Como fomos o primeiro país a iniciar um ciclo de aperto monetário, poderemos também inaugurar o ciclo de afrouxamento. Entraríamos numa nova fase de corte de juros, com alívio sobre as empresas, as famílias e o próprio governo.
A concorrência internacional é baixa. A China desaponta em sua reabertura. A Turquia é outro exemplo do que não fazer. A Rússia dispensa apresentações. A Índia é cara, próxima da China e carente em energia e comida, o que, aliás, nos sobra e está em falta no mundo.
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Com as autocracias emergindo como antíteses à tese das democracias liberais, as cadeias globais de suprimento estão sendo reorganizadas para diminuir a dependência do coleguinha chinês ou russo. É uma oportunidade de reindustrialização para o Ocidente. Nem tudo vai caber no México.
Enquanto isso tudo não se materializa, há de se aproveitar o que temos: 13,75% de retorno sem risco, com liquidez diária, é realmente formidável. O que isso compõe de capital no tempo é uma brutalidade. Também gosto das NTN-Bs pagando um juro real de 6,4% na parte mais longa (mas aqui é preciso ter clareza de que há volatilidade) e, na Bolsa, há valuations convidativos em ações de empresas sólidas, bem geridas e que geram caixa.
Com juros em queda e maior apreço da comunidade internacional, o Brasil pode viver um ciclo virtuoso. Para isso, precisa imediatamente mudar a rota. Os próximos cem dias vão dizer qual caminho foi escolhido.
Felipe Miranda é CEO do Grupo Empiricus e estrategista-chefe da Empiricus Research.
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