- Tenho certeza que 2020 mostrou a importância de se ter um propósito de vida, de ter amigos, de cuidar da família, de olhar para o outro, de ser mais altruísta.
Janeiro parecia mais um ano comum. Ainda íamos a restaurantes, ao escritório (quem lembra?), ainda nos abraçávamos, apertávamos as mãos. Em fevereiro ousamos fazer nossa última viagem em família e na volta, ao colocar a máscara no avião, eu me senti ridícula por ser uma das únicas.
Nada será como antes…
O último encontro antes da pandemia foi um almoço no IBGC (Instituto Brasileiro de Governança Corporativa) para falar justamente do papel dos conselheiros no que tange ao ASG (Ambiental, Social e Governança). Lembro de entrar no elevador e encontrar um velho amigo, presidente de uma grande multinacional – ele acabava de desligar o telefone perplexo: “Enfrentaremos tempos muito difíceis”, disse. Naquele almoço, todos ainda se cumprimentavam e se abraçavam normalmente… alguns dias depois recebemos a notícia que algumas pessoas estavam com covid-19.
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Conforme as taxas de infecção do coronavírus subiam, governos no mundo todo pediam para as pessoas ficarem em suas casas. Muitos correram para os supermercados, afinal de contas, o mundo ia parar. Não imaginávamos que passaríamos tanto tempo em quarentena, longe de nossas famílias e que mesmo com tudo isso, o mundo não pararia – só não seria mais o mesmo.
Na segunda semana de março me sentei à mesa de jantar aqui de casa, abri o computador, entrei no Zoom e não saí mais. Hoje é o dia 265 de março de 2020. O ano passou e tenho a sensação de ter vivido um filme. Em um ano definido pelo distanciamento social, foi reconfortante poder encontrar os amigos e a família no mundo virtual.
2020 exacerbou problemas que já existiam há décadas, mas que escolhíamos deixar para depois. E no meio do ano, por mais que falássemos de voltar ao“Normal”, o normal não voltaria mais. A desigualdade mostrou sua cara no mundo todo e, aqueles que podiam, tinham que fazer o que era certo, ajudar o máximo de pessoas possível.
Além do trabalho que já vínhamos fazendo com investimentos de impacto social, num primeiro momento, acabei me envolvendo com a história dos respiradores (um dia conto mais) e pude ver a o sofrimento daqueles que não tinham acesso a saúde. Durante a pandemia, participei de inúmeros grupos que se uniram para ajudar de todas as formas: distribuição de alimentos, doações, trabalhos
voluntários, ajuda às periferias e várias outras ações.
2020 foi o ano que os “invisíveis” – aqueles que não tem identidade – tiveram que se cadastrar para receber a ajuda do governo. Com o Auxílio Emergencial, o governo digitalizou 64 milhões de pessoas. Ficou clara a importância da identidade digital no combate as desigualdades.
A identidade digital tem sido implementada em diversos países, o melhor exemplo é a Índia que digitalizou 1,3 bilhões de pessoas. Se por um lado ela torna possível a entrega dos serviços essenciais para a população, por outro é vital que a identidade sirva apenas como identificador e que os dados só possam ser usados com o consentimento do usuário.
Não bastasse a pandemia, entre agosto de 2019 e julho deste ano, perdemos 11.088km² da Amazônia, quase 10% a mais que o ano anterior (segundo relatório do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais – Inpe). Essa área representa mais de três vezes a meta apresentada pelo Brasil à Convenção do Clima na conferência de 2009, em Copenhague, para 2020.
As emissões de gases causadores do aquecimento global do Brasil estão diretamente ligadas ao desmatamento. De acordo com o relatório apresentado no início de novembro pelo Observatório do Clima, em 2019, ocorreu uma alta de 9,6%, desses 44% dos gases ligados ao uso da terra, principalmente perda de floresta. Isso sem falar do Pantanal…
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Terminamos o ano com o mundo todo falando da importância da biodiversidade e do investimento na economia verde. Segundo o livro “O Paraíso restaurável” de Jorge Caldeira, Julia Maria Sekula e Luana Schabib, o mundo vem mudando depressa. Os alicerces de um futuro mais saudável, limpo e próspero estão sendo construídos. E, neste novo contexto, o Brasil, por suas potencialidades naturais,
pode assumir uma posição de enorme destaque. No mapa de biodiversidade que apresentam, o Brasil é o mais rico – só nos falta olhar para isso. Esta é a oportunidade histórica que não podemos perder.
Com o assassinato de George Floyd nos Estados Unidos e inúmeros outros que se seguiram, o racismo também ficou mais evidente que nunca. E terminamos 2020 vendo empresas no mundo todo buscando diversidade.
A pandemia trouxe a vulnerabilidade e interconectividade da nossa sociedade e indústrias para o centro de atenção de investidores e mostrou que considerações sobre sustentabilidade não podem mais ser ignorados.
Os mercados também mudaram, muito mais rápido do que se imaginava. O uso de critérios ESG termina o ano sendo quase obrigatório. Inúmeros gestores no mundo todo adotaram tais critérios e assim vem impactando as empresas nas quais investem. Segundo pesquisa do JP Morgan, investimentos sustentáveis devem atingir US$ 45 trilhões este ano e outra pesquisa da gestora Celent mostra que investimentos com critérios ESG vão chegar a US$ 53 trilhões em 2022.
Neste sentido, uma ótima notícia é que, aqui no Brasil, a CVM colocou em audiência pública uma proposta de reforma da Instrução CVM 480. A ideia é dar maior destaque à divulgação de fatores de risco sociais, ambientais e climáticos. O regulador vai exigir um posicionamento das companhias sobre objetivos de desenvolvimento sustentável relevantes no contexto de seus negócios. As que não divulgam relatórios de sustentabilidade terão que explicar.
Pela primeira vez em muito tempo vimos a compaixão unindo pessoas – finalmente o entendimento que somos todos parte de um todo maior, que estamos todos ligados. O investimento social alcançou R$ 6,5 bilhões, o dobro de 2018 segundo o Monitor das Doações do GIFE.
Tenho certeza que 2020 mostrou a importância de se ter um propósito de vida, de ter amigos, de cuidar da família, de olhar para o outro, de ser mais altruísta. Foi um ano de ensinamentos, de humildade. Só damos valor às coisas quando perdemos.
Muitos perderam pessoas amadas. Eu perdi meu pai. Ele já estava doente há muito tempo, então não acredito que tenha sido covid-19, mas a pandemia não me permitiu estar perto nos últimos meses de vida. Alguns anos antes, ele havia passado meses na UTIs e pude viver alguns anos mais perto. Não fosse isso, eu não teria tido essa chance.
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Um grande mestre budista um dia me disse que devemos andar com a morte no ombro pois só assim deixaremos de temê-la e entenderemos o que realmente importa. Espero que o ano de 2020 nos faça lembrar disso para sempre.