- Pedro Henrique (nome fictício), um pequeno comerciante de bebidas e barman de Petrópolis (RJ), perdeu mais de R$ 91,9 mil com a derrocada das ações da Americanas (AMER3)
- Ele está longe de ser o único a ter prejuízos por conta do colapso dos papéis AMER3. Fundos de investimento, gestores e operadores experientes também amargaram perdas em função do escândalo contábil na varejista
- No entanto, na história do investidor frustrado, há vários equívocos comuns que o deixaram ainda mais vulnerável a eventos inesperados como esse
Esta reportagem faz parte do especial “Caso Americanas: as histórias por trás dos números”
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“No dia 11 de janeiro, meu mundo acabou. Não consigo nem dormir direito, perdi praticamente tudo. É até vergonhoso de falar…até hoje eu não tinha comentado sobre isso com ninguém. Está sendo muito difícil”, desabafou Pedro Henrique, um pequeno comerciante de bebidas e barman de Petrópolis, cidade do serrana do Rio de Janeiro.
Ele entrou na Bolsa de Valores em meados de 2020, quando a taxa básica de juros Selic caiu a 2% e tirou atratividade dos produtos de renda fixa. Naquele ano, investimentos atrelados ao CDI (taxa próxima à Selic) renderam 2,76%. A poupança teve uma rentabilidade ainda menor, de 2,11%, enquanto a inflação de 4,52% engolia os rendimentos reais. Os dados foram levantados por Einar Rivero, head comercial do TradeMap.
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Junto com Pedro Henrique, centenas de milhares de investidores descobriram a renda variável neste mesmo período. Em dezembro de 2019, a B3 possuía 1,6 milhão de pessoas físicas. Em dezembro de 2020, eram 3,2 milhões de CPFs – aumento de 94% em 12 meses. Hoje, esse número saltou para 6 milhões (até o final de janeiro de 2023).
“É gente que, como eu, quer sair de uma vida de pobreza, economizando, guardando, aumentando o risco”, afirma. “Mas eu não esperava que algo assim acontecesse.”
O comerciante perdeu mais de R$ 91,9 mil com a derrocada das ações da Americanas (AMER3) após a empresa relatar, no dia 11 de janeiro, que havia descoberto “inconsistências contábeis” de R$ 20 bilhões nos balanços. Desde então, do patamar de R$ 12, antes do rombo contábil, os papéis chegaram às mínimas de R$ 0,64 no dia 20 de janeiro. Na última terça-feira (14 de fevereiro), estavam cotados a cerca de R$ 1,11.
Ele não foi o único. Contamos nesta reportagem a história de Lorenzo Siqueira, que perdeu tudo após apostar em uma estratégia de all in na Americanas.
A quantia perdida por Pedro Henrique corresponde a mais de 90% das reservas que ele juntou por quase seis anos trabalhando em um bar (2014 a 2020), fazendo freelances como barman e revendendo jogos de videogame. No total, ele investiu R$ 93,655.84 na compra dos ativos. “Deixei de fazer várias coisas que eu gosto, de sair, de comprar, deixei de lado muita coisa. Fiz muito sacrifício, todo dinheiro que eu pegava, eu guardava”, diz.
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Na sua curta trajetória na Bolsa, o investidor deu preferência para duas empresas: Ambev (ABEV3) e Americanas, ambas atreladas aos megaempresários Jorge Paulo Lemann, Marcel Telles e Carlos Alberto Sicupira, sócios da 3G Capital, nos quais se inspirava. “Eu trabalho muito com bebidas, sabe? E falar de Ambev é falar de Brahma, Corona e Budweiser, tudo que está ali no meu dia a dia. Aí você começa a estudar quem são os donos (dessas marcas) e passa a se referenciar neles. O trio me passava confiança demais”, ressalta o comerciante.
Foi por conta dessa admiração que Pedro Henrique, novato na Bolsa, escolheu a companhia de bebidas para ser seu primeiro investimento mais “pesado” em renda variável. O aporte em Ambev, feito ainda no final de 2020, rendeu um lucro de cerca de R$ 1 mil.
Depois, em 2021, decidiu sair da companhia de bebidas e comprar Americanas (AMER3), já que Lemann, Telles e Sicupira também estavam à frente da varejista. Além disso, a fusão das lojas físicas com os ativos digitais da B2W Digital, aprovada em junho daquele ano, e a pretensão da companhia de fazer uma listagem em Nova York deram ainda mais confiança ao investidor.
Pedro Henrique começou aplicando pouco em AMER3, cerca de R$ 5 mil de sua reserva. A medida que as ações registravam quedas, ele foi aportando mais e mais dinheiro em busca de fazer um “preço médio” mais baixo – até ficar totalmente exposto. Ou seja, ele colocou toda sua reserva, economizada ao longo de seis anos, nos ativos.
A última compra foi realizada em janeiro de 2022, no patamar de R$ 30, mas a desvalorização não cessava. Em dois anos (2021 e 2022), a AMER3 cedeu 89%. O comerciante parou, então, de comprar.
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“Eu tinha ficado um tempo parado na pandemia, não podia abrir o bar. Em 2022 eu voltei a trabalhar e acabei deixando o dinheiro lá”, afirma. Apesar de não fazer novos aportes, acompanhava o mercado e ficou feliz quando foi anunciado que Sérgio Rial, ex-CEO do banco Santander, assumiria a presidência da varejista no início de 2023.
“Pensei que a empresa fosse disparar”, diz o empreendedor. “Aliás, a Americanas tem os caras que são os maiores empresários do Brasil, os mais ricos, referência de administradores. Não achei que poderia praticamente quebrar, como aconteceu.”
Foi Rial que identificou e divulgou as inconsistências nos balanços, após dez dias no cargo de CEO, e em seguida renunciou. Um escândalo financeiro que resultou em uma queda de mais de 70% no pregão seguinte ao fato relevante que revelou o rombo contábil (12 de janeiro) ao mercado. Agora, a empresa está iniciando o processo de recuperação judicial, com dívidas totais que chegam aos R$ 42,5 bilhões, na última atualização dos débitos feita pela Americanas.
“Tu abdica de quase 6 anos da sua vida e acontece uma coisa dessa? Só quem já viveu isso, sabe. O passado não volta, vi os erros que eu cometi nessa empresa, eu me expus demais, eu confiei demais nesse trio aí”, diz. “Fiquei mal de saúde, não consigo dormir, fazer as coisas direito, mas é a vida. Não tem o que fazer. É que nem os influenciadores falam no Youtube: faz parte do jogo.”
Ponto de partida
Pedro Henrique está longe de ser o único a ter prejuízos por conta do colapso dos papéis AMER3. Fundos de investimento, gestores e operadores experientes também amargaram perdas em função do escândalo contábil na varejista. Contudo, na história do comerciante e barman, há vários equívocos comuns que o deixaram ainda mais vulnerável a eventos inesperados como esse.
Veja algumas estratégias que podem ajudam os investidores a se proteger antes de investir em ações.
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Antes de partir para o investimento em Bolsa, é necessário ter uma reserva de emergência – aquele capital que ficará na renda fixa, em investimentos com liquidez diária (cujo capital pode ser resgatado no mesmo dia da solicitação) e que o investidor só irá mexer em casos de necessidade. É aquela parcela do dinheiro que não pode correr o risco de perder, pois será o “paraquedas” em situações imprevisíveis, como desemprego, conserto de eletrodomésticos e gastos com saúde, por exemplo.
Separada a reserva de emergência, caso tenha perfil de risco compatível, o investidor pode partir para os ativos de risco. Mesmo assim, não é indicado que o montante delimitado para renda variável seja totalmente investido em uma única ação, fundo ou título. Diversificação é fundamental para garantir que o acionista não perderá tudo em meio a uma crise.
“Quando o investidor escolhe a renda variável, deve entender que é um ambiente de imprevisibilidade. A vantagem é que em Bolsa a possibilidade de ganhos expressivos é maior do que em qualquer outra modalidade. Em contrapartida, proporcionalmente ao ganho potencial, há o risco de perdas”, afirma Ernani Reis, analista da Ágora Investimentos.
E diversificar significa ter ativos de setores diferentes. No caso de Henrique, não adiantaria, por exemplo, ter Americanas, Magazine Luiza (MGLU3) e Via (VIIA3), pois as três são varejistas ligadas ao e-commerce. Elas estão expostas aos mesmos fatores de risco externos que podem pressionar os resultados.
O ambiente de juros e inflação altos é um desses fatores que vêm impactando os lucros dessas companhias. “Poderiam ser empresas de energia, educação, agronegócio etc. O investidor poderia buscar boas companhias em segmentos diferentes, o grande erro é colocar muito dinheiro em uma única posição”, afirma Reis.
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Leandro Siqueira, sócio da Varos e especialista em ações da Spiti, afirma que em teoria uma diversificação ideal pode ser feita com 17 ações E se o investidor não tiver experiência ou tempo para selecionar esses ativos, os ETFs (fundos que seguem índices de referência) ou as carteiras recomendadas dos departamentos de Research de bancos e corretoras podem facilitar esse processo.
“Os ETFs são fundos com várias ações. E aí tem ETFs que replicam o Ibovespa, replicam as empresas que são boas pagadoras de dividendos, small caps (empresas de baixa capitalização), entre outros ativos É o jeito mais fácil”, afirma Siqueira. “Ou você pode contratar uma casa de análises para fazer isso.”
O sócio da Varos não recomenda que a seleção seja feita de forma solo pelo investidor inexperiente. “Não é porque o investidor gosta da empresa que o papel vai estar barato para comprar”, afirma.
Preço médio?
Outro equívoco comum relacionado à falta de experiência na análise de empresas diz respeito a como e quando fazer preço-médio. Conforme as ações caíam, Pedro Henrique foi comprando cada vez mais AMER3 em busca de diminuir o preço médio pago por cada papel. Entretanto, não é porque uma ação recuou de preço, que ela está barata e deve ser recomprada. Pode ser que a queda apresentada seja justificada por um motivo sólido – como resultados abaixo do esperado, por exemplo, e perspectivas priores para o futuro.
“Para mim esse é o ponto principal, saber quanto vale a ação de uma empresa. Se você sabe quanto a ação vale, não ficará comprando só porque o papel caiu”, afirma Siqueira, da Varos. O especialista deu um exemplo simples.
Imagine que o investidor comprou, impulsivamente, as ações de uma empresa por R$ 80. Entretanto, depois de uma análise, ele descobre que na realidade os papéis valem apenas R$ 20. “Se a ação cair de R$ 80 para R$ 60, o investidor não deve comprar mais para “fazer preço médio”, pois a ação continua cara”, afirma Siqueira. “E todo preço médio tem um limite também, é um erro tirar dinheiro que é de reserva para por em uma ação que está caindo. O ideal é estipular um montante que você aceita por no papel.”
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Reis, da Ágora, ressalta que “fazer preço médio” é mais indicado quando o investidor tem a pretensão de manter posição no longo prazo “quando a escolha da empresa ocorrer por fundamento. “Ou seja, se mesmo com a queda das ações no curto prazo ainda houvesse justificativa para manter as ações por esses bons fundamentos e perspectivas”, afirma o analista.
AMER3 já não tinha boas perspectivas
É verdade que em meados de 2021, quando Pedro Henrique começou a investir em AMER3, várias grandes casas de análise recomendavam a compra, com preços-alvos que por vezes ultrapassavam os R$ 70. Contudo, ao longo de 2022, as indicações foram sendo revistas conforme a companhia reportava novos resultados.
No final do ano passado, antes do rombo contábil, bancos estrangeiros como Goldman Sachs e JP Morgan já recomendavam a venda do papel. Os especialistas consultados pelo E-Investidor também afirmam que a empresa já não era um case de investimento há muito tempo.
Flávia Meirelles, analista de research da Ágora Investimentos e especialista em varejo, explica que o aumento de competitividade no setor de e-commerce já pressionava as margens das varejistas. A chegada de players estrangeiros como Shein, Shopee e AliExpress ameaça as competidoras brasileiras.
“No nosso último relatório sobre Americanas, antes das inconsistências contábeis, também ressaltamos alguns pontos importantes que traziam algumas preocupações”, afirma Meirelles. “Falávamos que os resultados do terceiro trimestre de 2022 mostraram forte desaceleração da receita e uma queima de caixa acelerada. Falamos que a carga financeira era suficientemente grande para consumir todo o Ebitda (lucro antes dos juros, impostos, depreciação e amortização) dos últimos 12 meses.”
Aliado ao aumento de concorrência, o cenário macro desafiador, com juros e inflação mais altos, criaram a tempestade perfeita não só para Americanas, mas para Magazine Luiza (MGLU3) e Via (VIIA3).
Siqueira, da Varos, explica que o segmento de e-commerce é tradicionalmente “ruim” para atuar. Não há diferenciação de produtos, isto é, todas as companhias vendem as mesmas mercadorias (eletrodomésticos, eletrônicos e móveis das mesmas marcas). A distinção fica por conta do preço e tempo de entrega.
“As companhias são meras vitrines, o que significa que para sair ganhando não basta ser criativo. Você precisa ter um parcelamento maior, preço menor, tempo de entrega mais rápido. Quem ganha essa disputa é quem tem tamanho maior e acesso a crédito mais barato, é uma competição que pende muito para empresas que já são grandes”, diz Siqueira.
Para ele, Mercado Livre e Amazon se saem ganhadoras deste cenário, não as players brasileiras. “Não acredito que nesse setor possa existir mais de cinco empresas diferentes como temos hoje, que vendem basicamente os mesmos produtos”, afirma Siqueira. “Não me surpreenderia se nos próximos dez anos víssemos a Via ou a Magalu falindo ou sendo adquiridas. Poucas pessoas no mercado estavam otimistas com essas empresas.”
Danielle Lopes, sócia e analista de ações da Nord Research, compartilha dessa visão. Segundo ela, já há muito o case Americanas não era interessante. “Desde 2003 a empresa rodava em prejuízo. Teve lucro em 2021 por conta da pandemia, mas bem pequeno, com margens (de lucro) pequenas. A última vez que tiveram uma geração de caixa foi em 2019, e caixa operacional. Ou seja, a geração de caixa da companhia já era de baixa qualidade”, diz.
A varejista chegou a negociar a 44x o Ebitda (número de anos necessários para o resultado operacional “pagar” o valor da empresa) em 2020, segundo dados da Status Invest. “Extremamente caro para uma empresa com baixa visibilidade de resultados, competição forte e margens baixa. Para nós, era uma tese negativa mais óbvia. Não temos, aliás, uma visão muito construtiva para varejo”, conclui.
Luiz Barsi, maior investidor pessoa física da Bolsa de Valores, também tem um posicionamento famoso contra o investimento em varejistas de e-commerce. Saiba mais nesta reportagem.
Hoje, o empreendedor Henrique não admira mais os empresários Lemann, Telles e Sicupira. Por mais que tenha cometido erros na alocação do investimento, não esperava ter que lidar com a dor de perder todo o patrimônio em questão de horas. O livro “Sonho Grande”, cujos autores são o trio de bilionários, virou um elefante branco no meio da casa. “Para você ver, até livro dos caras eu tinha”, conclui.
Henrique é mais uma história por trás do colapso da Americanas. Se você também está arcando com os prejuízos, escreva para [email protected] e [email protected]