Criptomoedas

Por que o valor das criptomoedas desabou em 2022

Ativos caíram mais de 50%, o volume de transações encolheu e várias empresas famosas faliram

Por que o valor das criptomoedas desabou em 2022
2022 foi marcado por um "inverno cripto". (Foto: Envato)
  • Em 2021, o mundo das criptomoedas estava em festa, com os preços do bitcoin e do ethereum em máximas históricas. Mas esse tempo acabou
  • Ao longo de 2022, os valores das criptomoedas caíram mais de 50%, o volume de transações encolheu e várias empresas famosas entraram em falência por conta de crises de liquidez
  • Muitos defensores das criptomoedas continuam otimistas – vendo as falências apenas como mais um transtorno na guinada da tecnologia em direção ao futuro

Há um ano, o mundo das criptomoedas estava em festa, com os preços do bitcoin e do ethereum em máximas históricas, celebridades se acotovelando para promover arte digital custando uma fortuna e logotipos de empresas de blockchain em estádios e entre os anúncios do Super Bowl.

Esse tempo acabou.

Ao longo de 2022, os valores das criptomoedas caíram mais de 50%, o volume de transações encolheu e várias empresas famosas entraram em falência por conta de crises de liquidez. A prisão recente de Sam Bankman-Fried, o ex-CEO daquela que até bem pouco tempo era uma das maiores e mais respeitadas exchanges de criptomoedas do mundo, apenas agravou a sensação de que a bolha das criptomoedas decididamente estourou, levando pelos ares bilhões de dólares de investimentos realizados por pessoas comuns, fundos de pensão, capitalistas de risco e empresas tradicionais.

Publicidade

Invista em oportunidades que combinam com seus objetivos. Faça seu cadastro na Ágora Investimentos

Do nada, os governos que há muito se opunham à regulamentação estão pressionando por mais fiscalização, enquanto as agências reguladoras federais e a polícia põem em prática investigações civis e criminais.

O setor das criptomoedas está chamando este momento de “inverno cripto”. Dizem ser algo cíclico, muito semelhante a um mercado com tendência de baixa para Wall Street – algo que já aconteceu antes e vai acabar passando.

No entanto, especialistas dizem que a ferocidade e a escala dessa desaceleração podem acabar levando a uma era do gelo. “Estamos em um momento profundamente existencialista para o setor”, disse Yesha Yadav, professora de direito da Universidade Vanderbilt, que acompanha de perto a regulamentação das criptomoedas.

Um fator determinante importante: “quão profundo é o estrago?”.

A espetacular ascensão e queda dos mercados de criptomoedas abalou seu mundo de investidores e apoiadores, que há apenas um ano estavam no topo do mercado. Especialistas em finanças compararam a derrocada com o estouro de outras bolhas importantes no passado – da crise da internet, há duas décadas, a uma corrida por imóveis na Flórida, há um século.

Publicidade

Este não foi o primeiro tombo das criptomoedas, mas desta vez a queda foi maior – após conquistarem aceitação geral que não tinham antes e chegando até mesmo a serem usadas por alguns fundos de pensão para aposentados. Não está claro se elas vão conseguir se recuperar.

Criadas há pouco mais de uma década e impulsionadas pela crise financeira de 2007-2008, as criptomoedas são ativos digitais controlados por computador destinados a funcionar sem a mediação de instituições financeiras tradicionais, seja um banco ou o governo.

A criptomoeda mais famosa, o bitcoin, foi criada no início de 2009 como uma forma de evitar a necessidade de intermediários financeiros, revolucionar o sistema econômico global e tornar mais fácil para as pessoas fazerem negócios diretamente umas com as outras. Ela passou por vários ciclos de altos e baixos – sobretudo entre 2017 e 2018, quando o preço do bitcoin subiu rapidamente para cerca de US$ 20 mil antes de uma série de golpes de grande repercussão e boatos de alguns países planejando proibir a negociação de criptomoedas, o que a levou a perder 80% de seu valor em apenas alguns meses.

A ressaca desse crash continuou por algum tempo, mas o mundo das criptomoedas começou a prosperar outra vez em meio à pandemia. Os cortes nas taxas de juros tornaram mais barato para as pessoas pegar empréstimos e investir em ativos especulativos.

Os aplicativos de negociação de ações e as novas exchanges de criptomoedas fáceis de se usar tornaram o complicado processo de compra e venda de moedas digitais simples e acessível para milhões de pessoas que, até bem pouco tempo, nem tinham ouvido falar em bitcoin. Os tokens não fungíveis (NFTs) recorreram à tecnologia por trás das criptomoedas para permitir que as pessoas negociassem arte digital – o que também foi um sucesso.

Publicidade

Em novembro de 2021, o Centro de Pesquisa Pew identificou que um em cada seis americanos havia investido em criptomoedas. Naquele mesmo mês, o valor total das criptomoedas monitoradas pela CoinGecko, empresa que acompanha dados do setor, ultrapassou US$ 3 trilhões, aproximadamente o mesmo valor do PIB do Reino Unido.

Um único bitcoin valia cerca de US$ 68 mil, quase quatro vezes o valor de seu pico anterior em 2017. O mercado de NFTs ficou perto de US$ 25 bilhões em 2021. E um “banco de criptomoedas” chamado Celsius Network estava oferecendo taxas de juros de dois dígitos para usuários que deixassem suas moedas digitais em suas contas na empresa.

“Todo o modelo estava funcionando razoavelmente bem, contanto que a linha no gráfico continuasse a subir”, disse Molly White, engenheira de software que se tornou uma das críticas mais conhecidas do setor ao catalogar golpes, idiossincrasias e fracassos relacionados com as criptomoedas em seu blog. “Estamos vendo o que acontece quando aquela suposição não é mais válida.”

Uma queda espetacular

Um dos que mais se deu bem com o boom das criptomoedas foi Bankman-Fried, cuja exchange, a FTX, ganhava dinheiro ao cobrar taxas de transação toda vez que alguém usava a plataforma para comprar e vender as moedas digitais.

A FTX ganhou milhões com investimentos de empresas de capital de risco respeitadas, como a Sequoia, e de fundos de pensão, como o Ontario Teachers Pension Plan, que avaliou a empresa em US$ 32 bilhões.

Com sua cabeleira castanha e encaracolada, Bankman-Fried estampou a capa da Forbes e se tornou uma das pessoas mais ricas do mundo, com patrimônio avaliado em US$ 22,5 bilhões. O residente das Bahamas disse à revista, como já havia mencionado para outras pessoas, que não estava ganhando dinheiro para si mesmo. Pelo contrário, mais cedo ou mais tarde, doaria tudo – uma missão altruísta que ele dizia ter lhe conduzido ao mundo das criptomoedas.

Publicidade

“Meu objetivo é ter impacto”, disse ele à revista.

Bankman-Fried deu milhões a políticos e foi o segundo maior doador dos democratas nas eleições intermediárias de 2022. Ele usou sua influência recém-descoberta para pressionar por regulamentações que, segundo os concorrentes, beneficiariam a FTX.

Os anúncios extravagantes contavam com celebridades como o astro da NFL Tom Brady, a campeã de tênis Naomi Osaka e um dos principais jogadores da NBA Stephen Curry, que ajudaram a defender a ideia de que a FTX era o futuro fácil e confiável do setor.

“Topa?”, perguntava Brady aos amigos inúmeras vezes em um comercial de TV. Muitos toparam. A empresa disse que tinha mais de um milhão de usuários nos Estados Unidos e cinco milhões em todo o mundo até o final de 2021.

Mas, no início de 2022, a euforia com as criptomoedas começou a ruir. O aumento das taxas de juros, a inflação e as preocupações com uma possível recessão tornaram os investidores avessos ao risco. As ações do setor de tecnologia, que se valorizavam de forma constante há muito tempo, despencaram, assustando tanto investidores importantes do setor financeiro como pessoas comuns, que também haviam se lançado no mercado de ações e de criptomoedas.

Publicidade

O primeiro grande baque veio em maio, quando uma moeda digital chamada TerraUSD – uma “stablecoin” detida por muitos e projetada por algoritmos para ser atrelada ao dólar – caiu. O sell-off surpresa ajudou a dar fim a mais de 25% do valor de mercado das criptomoedas.

Em junho, a Celsius Network, o banco e credor de ativos digitais que oferecia taxas de juros de dois dígitos, anunciou do nada que estava suspendendo os saques, fazendo com que os preços das criptomoedas despencassem ainda mais. O banco, que havia acumulado cerca de US$ 20 bilhões em ativos durante seu auge, entrou com um pedido de falência em julho.

Mais ou menos na mesma época, um fundo de hedge focado em criptomoedas deixou de pagar um empréstimo de US$ 665 milhões tomado de uma credora de ativos digitais, a Voyager Digital – o que acabou levando o fundo de hedge e a Voyager a declararem falência.

Enquanto isso, os preços do bitcoin, da moeda digital ethereum e de outros ativos digitais despencaram. O “inverno cripto” estava a caminho.

Mas Bankman-Fried e a FTX até então pareciam intactos. A exchange realizou tentativas bem-sucedidas para ajudar rivais, inclusive a Voyager – o que lhe rendeu elogios. (A Voyager desistiu do acordo quando a FTX entrou com o pedido de falência).

Publicidade

Isso mudou em novembro, quando o Coindesk, site de notícias especializado em criptomoedas, publicou uma reportagem mostrando que grande parte do valor do fundo de hedge de Bankman-Fried, o Alameda Research, era composto por um token de criptomoeda criado pela FTX. As duas empresas deveriam ter separações claras, e a matéria provocou uma onda de investigações.

Leia também: Ex-CEO da Alameda diz que ela e Bankman-Fried enganaram clientes da FTX

O empresário canadense-cingapuriano Changpeng Zhao, dono da maior rival da FTX, a Binance, anunciou que venderia sua participação de de cerca de US$ 500 milhões em tokens da FTX, desencadeando um sell-off generalizado e fazendo com que o valor do ativo despencasse.

A empresa bloqueou os saques e começou a procurar investimentos de emergência. A Binance anunciou que compraria a FTX, mas cancelou a proposta no dia seguinte, depois de Zhao dizer que a empresa havia “gerido de forma inadequada o dinheiro dos clientes”.

A FTX, a Alameda e dezenas de outras instituições relacionadas e administradas por Bankman-Fried entraram com um pedido de falência. Ele deixou o cargo de CEO. Atualmente, a Voyager está em busca de um novo comprador.

Douglas Campbell perdeu US$ 27 mil com a exchange da FTX nos EUA e “dezenas de milhares” de dólares na bolsa internacional da FTX. Campbell, 42 anos, disse ter sido atraído pelas promessas de Bankman-Fried de compartilhar sua riqueza e por sua formação no MIT. “Então isso foi meio devastador”, disse o economista que mora em Arlington, na Virgínia. “Agora está um pouco claro que grande parte das criptomoedas são um golpe.”

Sumiço de ativos

Um dia antes de Bankman-Fried testemunhar perante uma comissão da Câmara, ele foi preso em sua casa nas Bahamas, onde morava e onde a FTX estava sediada, a pedido do Departamento de Justiça dos EUA. Promotores estão correndo atrás da extradição dele.

Bankman-Fried foi indiciado por oito acusações, entre elas fraude, conspiração e lavagem de dinheiro. Os promotores federais alegaram que, entre outros crimes, Bankman-Fried usou bilhões de dólares de clientes para investimentos pessoais e contribuições políticas, além de utilizar os recursos para financiar bilhões em empréstimos à Alameda. A Comissão de Valores Mobiliários dos EUA e a Comissão de Negociação de Contratos Futuros de Commodities apresentaram acusações civis com alegações semelhantes.

A FTX deve US$ 3 bilhões a seus 50 principais credores, de acordo com a empresa, que atualmente está sendo comandada por um especialista em falências cuja única missão é recuperar o máximo de dinheiro possível para investidores e clientes.

John J. Ray, o advogado especialista em recuperar fundos de empresas falidas que assumiu o cargo de CEO da FTX, testemunhou recentemente perante o Comitê de Serviços Financeiros da Câmara, alegando que a empresa usou o QuickBooks, software de finanças pessoais, para manutenção de registros.

Ray disse que as acusações contra Bankman-Fried não eram complexas, mas, na verdade, diziam respeito ao “bom e velho desfalque”, e que muitos investidores talvez não recuperassem todo o seu dinheiro. “No fim das contas, não seremos capazes de reaver todas as perdas”, disse ele.

Bankman-Fried não respondeu oficialmente às acusações, mas em inúmeras entrevistas antes de ser preso, ele se descreveu como um fundador bem-intencionado que estava envolvido em uma situação difícil da qual não fazia ideia de como sair. Ele insistiu que se os fundos foram misturados entre a Alameda Research e a FTX – uma parte fundamental das acusações do governo contra ele – não se tratava de uma ação intencional.

Mark Botnick, porta-voz de Bankman-Fried, não quis se pronunciar.

“Se isso está acontecendo na FTX, imagina nos outros lugares?”, disse Yesha, a professora da Universidade Vanderbilt. “É daí que surge a questão existencial.”

Outros players das criptomoedas – como o banco BlockFi e a credora Genesis – já sucumbiram ou estão se esforçando para evitar a falência. Após a prisão de Bankman-Fried, investidores apreensivos sacaram cerca de US$ 3 bilhões da Binance, embora Zhao tenha minimizado o pânico.

Atualmente, o valor total das criptomoedas do mundo monitoradas pela empresa de dados CoinMarketCap é de cerca de US$ 850 bilhões, ante os US$ 3 trilhões de um ano atrás. O valor médio das negociações de criptomoedas por dia despencou de US$ 131 bilhões, em maio, para US$ 57 bilhões, em dezembro – uma redução de mais 50%, de acordo com a CoinGecko.

O valor do Bitcoin diminuiu 65% em 2022, para cerca de US$ 17.500, embora isso ainda esteja acima do que valeu durante a maior parte de sua existência.

Muitos defensores das criptomoedas continuam otimistas – vendo as falências apenas como mais um transtorno na guinada da tecnologia em direção ao futuro.

“A meu ver, as criptomoedas são apenas a próxima nova tecnologia, e cada nova tecnologia tem esses altos e baixos”, disse Lou Kerner, CEO da Blockchain Coinvestors Acquisition Corp. I, uma empresa de moedas digitais.

A falência da FTX e outros fracassos das criptomoedas de 2021 até agora não põem em perigo outros mercados financeiros, disse Matthew Slaughter, diretor da Escola de Negócios Tuck, da Faculdade Dartmouth. As criptomoedas são uma tecnologia relativamente nova, afirmou, e resta saber se o mundo encontrará um uso para elas além da especulação.

“Isso mostra que, na verdade, elas não estão muito interconectadas com os mercados de capitais na economia global geral”, disse ele, acrescentando que a ausência de contágio mais amplo também pode ser atribuída a regulamentações destinadas a garantir que as falências não provoquem crises financeiras generalizadas.

Darragh Grove-White, 37 anos, especialista em marketing digital que vive no Canadá, investe em criptomoedas desde 2018. De lá para cá, ele disse ter sofrido golpes e lidado com situações difíceis várias vezes.

Ele investiu e perdeu dinheiro na Quadriga, exchange de criptomoedas, que as autoridades canadenses em 2020 descobriram ter semelhanças com um esquema de pirâmide. Grove-White também investiu no Terra USD e no Luna, assim como na Celsius Network, e perdeu dinheiro durante ambas as falências este ano – e tem várias centenas de dólares congelados na FTX.

O valor total de seus investimentos em criptomoedas encolheu de cerca de US$ 400 mil para aproximadamente US$ 40 mil. Mesmo assim, ele acredita no futuro das criptomoedas e menciona um “viés de otimismo”. “O lado positivo é que isso não deixa você ficar desanimado por muito tempo”, disse ele. “Já o negativo é às vezes não saber quando é hora de cair fora.”

Jeremy B. Merrill, do Washington Post, contribuiu com esta reportagem./ TRADUÇÃO DE ROMINA CÁCIA

Informe seu e-mail

Faça com que esse conteúdo ajude mais investidores. Compartilhe com os seus contatos