- As reviravoltas do mercado da criptografia estão colidindo com a crescente preocupação dos reguladores sobre os riscos assumidos por investidores comuns
- A Comissão de Valores Mobiliários dos Estados Unidos (SEC, na sigla em inglês) alertou os investidores que o bitcoin é um “investimento altamente especulativo”, apontando para “a falta de regulamentação e potencial de fraude"
(Hamza Shaban/The Washington Post) – Por um breve momento, Brian Cardarella foi um milionário da Dogecoin. O homem de 41 anos disse que investiu dezenas de milhares de dólares na criptomoeda no início deste ano. Quando o token digital – criado em 2013 a partir de um meme bem-humorado – disparou, ele viu o valor de seu investimento ultrapassar US$ 1 milhão.
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Apesar de uma reversão recente, o investimento ainda vale centenas de milhares de dólares, de acordo com uma captura de tela que ele forneceu de sua conta. “É uma montanha-russa emocional”, disse Cardarella, que mora perto de Boston e fundou uma empresa de consultoria de software.
A ascensão das bitcoins – um tipo de criptomoeda que existe em computadores por toda a internet e não depende de nenhum governo para supervisioná-la – muitas vezes é considerada um modismo financeiro para especuladores da tecnologia.
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Mas este ano viu o número de criptomoedas explodir, cunhando hordas de investidores bem-sucedidos atraídos pelo potencial de enormes lucros, uma cultura embebida em humor e no incentivo de celebridades bilionárias como Elon Musk. A Dogecoin, batizada em homenagem ao meme “doge” de Shiba Inu, subiu 10.000% este ano, de acordo com a Coindesk, um meio de comunicação que monitora criptomoedas.
Mas as reviravoltas do mercado da criptografia estão colidindo com a crescente preocupação dos reguladores sobre os riscos assumidos por investidores comuns e o potencial dos sistemas de pagamento digital anônimos para facilitar a má conduta.
Na semana passada, a Comissão de Valores Mobiliários dos Estados Unidos (SEC, na sigla em inglês) alertou os investidores que o bitcoin é um “investimento altamente especulativo”, apontando para “a falta de regulamentação e potencial de fraude ou manipulação”.
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As criptomoedas, que agora chegam a quase 10 mil, vêm sendo alimentadas por sites que permitem aos investidores negociar facilmente seus investimentos, bem como os pagamentos de estímulos, os quais puderam ser facilmente usados para especular, com os americanos presos em casa durante a pandemia do coronavírus.
“Por que tantas pessoas estão se metendo nisso?”, disse Cardarella. “Eu não ficaria surpreso se muitas pessoas que investiram em criptografia dissessem que a têm como seu único investimento”.
Os perigos das criptomoedas
As criptomoedas são essencialmente ativos digitais que permitem às pessoas trocar informações ou representar itens de valor na internet. Em muitos casos, as moedas digitais rodam numa rede global de computadores que não estão sob o controle de um banco central ou empresa. Eles promovem a manutenção de registros, concedendo aos usuários a capacidade de certificar instantaneamente suas transações num registro público, sem nenhum intermediário na transação.
O ataque de ransomware que derrubou o Oleoduto Colonial, gerando escassez de gás em grandes áreas do país na semana passada, renovou a atenção sobre o uso de criptomoedas para facilitar o crime.
“Há uma tensão entre a privacidade e o direito de saber do governo”, disse Kenneth Rogoff, professor de economia da Universidade de Harvard, que destacou a evasão fiscal e o financiamento de atividades ilícitas entre os desafios que as criptomoedas representam para os governos.
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“Isso sempre acontece com dinheiro, mas dinheiro não é nada comparado ao potencial da criptografia”, disse ele.
Muitos dos tokens mais populares, como o bitcoin, têm comunidades inteiras de desenvolvedores e empreendedores criando produtos financeiros e programas de computador com base na tecnologia. Outras moedas não têm utilidade discernível a não ser a própria transação.
Os últimos dias sublinharam a extrema volatilidade do mercado e as extraordinárias somas que passam de mão em mão.
Após sua aparição em 8 de maio no ‘Saturday Night Live’ – onde Musk, que se autodenominava o ‘Dogefather’, pareceu depreciar a criptomoeda – a Dogecoin despencou mais de 30%. Musk emendou essa aparição com outro evento que movimentou o mercado, tuitando que sua empresa de veículos elétricos, a Tesla, não aceitaria mais bitcoin como pagamento, citando sua alta demanda de energia.
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O bitcoin, o token digital mais valioso, perdeu cerca de 10% do valor, levando muitos outros nomes junto. Recentemente, Musk sugeriu no Twitter que a Tesla já pode ter vendido ou ainda vai vender seus bitcoins – o que fez os preços despencarem.
Os caprichos de um bilionário e seus tuítes demolidores foram apenas parte da história deste mês. Uma nova criptomoeda chamada Internet Computer, que visa promover versões abertas e descentralizadas de mídia social e softwares empresariais, estreou a US$ 90 bilhões, mas seu valor de mercado chegou a US$ 40 bilhões na sexta-feira.
Nos últimos três meses, o valor total de todas as criptomoedas aumentou 40%, para cerca de US$ 2 trilhões.
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Aplicativos como Robinhood e Coinbase oferecem uma série de criptomoedas para investir, as quais os usuários podem converter em dinheiro. A facilidade de negociação, dizem os especialistas, foi ampliada pelas condições econômicas e sociais da pandemia, que afastou as pessoas do entretenimento ao vivo e dos cassinos, ao mesmo tempo em que muitos americanos tinham milhares de dólares em pagamentos de estímulo para gastar.
Um tuíte viralizado de Nick Maggiulli, diretor de operações da Ritholtz Wealth Management, resumiu o crescimento astronômico para aqueles dispostos a correr o risco: se uma pessoa que recebesse três cheques de estímulo do governo investisse o valor total em Dogecoin – comprando em abril e dezembro do ano passado e de novo em março deste ano – esse portfólio agora deteria aproximadamente US$ 500 mil no valor do token.
“Quando você tem esse grande movimento de preços, começa a ver os amigos ganhando dinheiro, aí as pessoas têm esse medo geral de ficar de fora e querem fazer parte da emoção”, disse James Putra, vice-presidente de estratégia de produto da TradeStation Crypto, uma plataforma de negociação. “Quando você coloca uma nação inteira dentro de casa, as pessoas procuram maneiras interessantes” de passar o tempo, disse ele. “Pessoas que nunca pensavam em negociar agora estão falando comigo sobre médias móveis e padrões gráficos”.
Fenômeno global
Mas o fenômeno é global e muitos investidores veem os méritos das novas tecnologias e a chance de ganhar quantias que mudam vidas.
“Estou entrando numa nova faixa de impostos que nunca tocaria com base na minha renda de trabalho”, disse Christopher Hansson, estudante de direito de 29 anos no sul da Suécia que trabalhava no varejo e compartilhou uma captura de tela de sua conta em criptomoeda. “Muitas pessoas ganharam quantias de dinheiro que mudaram suas vidas durante os primeiros estágios da internet, e eu diria que a criptomoeda é a internet 2.0”.
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Desde 2017, Hansson disse que investiu cerca de US$ 15 mil em vários tokens e viu seu portfólio de criptografia crescer significativamente. “Independência financeira – é claro que é um tiro no escuro, mas é um tiro”, disse ele. “Hoje eu moro no meu apartamento com meu cachorro. Com jardim e tudo de bom”.
Angela Walch, professora da Escola de Direito da Universidade de St. Mary e pesquisadora associada do UCL Center for Blockchain Technologies, disse que uma confluência de fatores está por trás da enxurrada de investidores amadores que agora mergulham no mercado de novos ativos.
“Por que isso está acontecendo agora, em termos culturais? Tivemos grandes eventos que abalaram o mundo, esta enorme pandemia global, pacotes de estímulo e muitos gastos do governo nos Estados Unidos e em outros lugares”, disse ela. “O mundo está desmoronando, então aqui é o seu porto seguro. É como comprar um bilhete de loteria ou gastar o que for possível em Las Vegas. Você pode ganhar muito. Mas também tem um valor de entretenimento: a chance de ganhar muito”.
Na esteira do frenesi da GameStop no início deste ano, quando as ações viraram memes, o hype substituiu os fundamentos e o endosso de celebridades chamou a atenção das autoridades financeiras: os reguladores estão de olho.
Declarações de autoridades financeiras destacam a crescente preocupação do governo, especialmente porque, dizem os especialistas, figuras como Musk mostraram a influência descomunal que têm sobre os mercados e a maneira como os preços oscilam violentamente quando os influenciadores proclamam seu entusiasmo ou desprezo.
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Necessidade de regulação
Os recentes avisos da SEC sobre os perigos do bitcoin vêm junto com apelos por uma ação governamental mais vigorosa, estabelecendo um cão de guarda federal com mandato claro para supervisionar a nebulosa área regulatória da criptomoeda.
“No momento, as bolsas que negociam esses ativos criptográficos não têm uma estrutura regulatória, nem na SEC nem em nossa agência irmã, a Comissão de Negociação de Commodities”, disse o presidente da SEC, Gary Gensler, ao Congresso no início deste mês, num de seus primeiros comentários sobre a regulamentação de criptomoedas. “No momento não há um regulador de mercado em relação a essas trocas de criptografia. E, portanto, realmente não há proteção contra fraude ou manipulação”.
As autoridades no exterior adotaram uma abordagem menos diplomática.
“Vou dizer de forma muito direta, mais uma vez”, disse Andrew Bailey, presidente do Bank of England. “Compre apenas se estiver preparado para perder todo o seu dinheiro”.
Os reguladores enfrentam uma pressão crescente para definir uma nova política de criptomoeda não apenas por causa dos riscos para os investidores de varejo, mas também pelo boom mais amplo da criptografia apoiado por instituições financeiras de primeira linha, como JPMorgan Chase e Goldman Sachs, que estão avançando planos para oferecer a seus clientes produtos financeiros baseados em criptografia.
“Quanto mais esses tentáculos da criptografia entram no sistema financeiro dominante, mais eles podem representar um risco sistêmico”, disse Walch, da St. Mary’s University. “Eles deixam de ser seus próprios projetos de mundo alternativo – já não atingem só as pessoas envolvidas”.
E, como a crise do ransomware do Oleoduto Colonial deixou claro, as autoridades do governo ainda precisam resolver uma tensão fundamental no coração do bitcoin e de outras criptomoedas.
“Existem dois conceitos muito diferentes: criar anonimato no blockchain e, simultaneamente, ter uma moeda rastreável e regulamentada. Na minha opinião, são conceitos muito antitéticos”, disse Alex Reffett, cofundador do East Paces Group, uma empresa de gestão de fortunas.
“O governo pode destruir as criptomoedas, se quiser”, disse ele. “Mas as ideias que tornam as criptomoedas únicas e valiosas, pelo menos até certo ponto, dependem das zonas não regulamentadas”.
(Tradução de Renato Prelorentzou)