- Carlton McCoy tronou-se o primeiro negro a comandar uma grande vinícola americana
- A pandemia atingiu a Heitz num momento especialmente infeliz: a vinícola estava a três meses de reabrir seu salão de degustação. McCoy não demitiu nenhum dos 52 funcionários da casa, mas impôs diversas condições para o novo contexto de trabalho
- McCoy conta que a pior ideia recebida foi a de re-engarrafar um vinho já existente com um novo rótulo e um preço mais alto
Depoimento a Ben Ryder Howe (NYT News Service) – Carlton McCoy, CEO da vinícola Heitz Cellar, na Califórnia, está acostumado a ser o único negro na sala de reuniões. Embora existam quase 300 Master Sommeliers nos Estados Unidos, apenas três são afro-americanos – e McCoy, 36 anos, é um deles.
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“O vinho é visto como um produto de luxo, mesmo quando se trata de um pinot grigio acessível”, diz ele. “E os negros não costumam ser associados a produtos de luxo”.
Há 18 meses, McCoy tronou-se o primeiro negro a comandar uma grande vinícola americana. Ele foi
contratado para ser o CEO da Heitz, no Napa Valley – produtora do cabernet sauvignon Martha’s Vineyard 1974, considerado um dos melhores vinhos da história da Califórnia. O convite para o cargo partiu de Gaylon Lawrence Jr., o bilionário do setor agrícola do estado de Arkansas que comprou a Heitz em 2018. Os dois se conheceram no hotel Little Nell, na famosa estação de esqui de Aspen, onde McCoy estava à frente de um respeitado programa de vinhos.
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“Gaylon fez uma reserva para a adega, onde eu havia criado um ambiente com clima de bar clandestino dos anos 30”, lembra McCoy. “Passamos a noite ali, ouvindo [a banda de hip hop] A Tribe Called Quest. Entrei achando que daria apenas um oi mas acabamos conversando por quatro horas, bebendo uma garrafa de Petrus 1990 e outra de DRC Grands Échezeaux 2002”.
McCoy cresceu numa casa cheia, onde viviam várias gerações de sua família e onde ninguém tomava vinho. “Meu avô veio do Sul dos Estados Unidos, e todos os anos comprava sete litros de destilado de milho produzido por um amigo”, conta. “Minha avó era pastora da igreja e não bebia álcool”.
Quando estava no Ensino Médio, McCoy venceu um concurso de culinária da cidade com uma receita de peito de frango cozido a baixa temperatura, acompanhado por legumes torneados e velouté de ervas. Depois disso, foi estudar no Culinary Institute of America, trabalhou em restaurantes renomados como o Per Se e o Aquavit e fez a formação de sommelier – formou-se como o primeiro aluno da turma. De lá, ele foi direto para um dos empregos mais cobiçados do setor: diretor do programa de vinhos do Little Nell.
A pandemia atingiu a Heitz num momento especialmente infeliz: a vinícola estava a três meses de reabrir seu salão de degustação. McCoy não demitiu nenhum dos 52 funcionários da casa, mas impôs diversas condições para o novo contexto de trabalho. Uma delas: é proibido fazer reuniões por Zoom. “Não consigo nem explicar o quanto odeio essa cultura Zoom”, ele afirma. “Preciso do contato visual, da linguagem corporal”. Além disso, e-mails internos podem ter no máximo cinco frases, e todos têm o compromisso de enviar pelo menos duas sugestões por dia para melhorar a Heitz.
McCoy conta que a pior ideia recebida foi a de re-engarrafar um vinho já existente com um novo rótulo e um preço mais alto – “coisa que sempre acontece na indústria do vinho”. Já a melhor ideia é tão boa que ele prefere mantê-la em segredo.
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TERÇA-FEIRA
06h00: Sou uma raridade no setor de alimentos e bebidas: gosto de acordar cedo. De manhã, saio para correr. Esse hábito, mais do que qualquer outra atividade, me ajuda a clarear as ideias. Moro perto de um de nossos terrenos no Napa, a vinícola Hayne. Então corro por ali e acompanho o ciclo de crescimento das uvas. Quando preciso de um empurrãozinho, gosto de ouvir [o rapper] Rick Ross.
09h00: A primeira reunião do dia costuma ser com o diretor financeiro da vinícola. Assim como a maior parte da equipe, ele tem uns trinta e poucos anos. Esse perfil faz parte da estratégia de ampliar nossa visão. A Heitz é uma vinícola histórica, mas um de nossos projetos é ser mais abertos, um lugar onde pessoas jovens possam entrar em contato com vinhos clássicos e de bom pedigree, com rótulos de qualidade garantida.
15h00: Troco algumas mensagens com Maverick Carter, um dos meus mentores. Carter é CEO da SpringHill Entertainment e também empresário de LeBron James. Nós nos conhecemos quando ele era cliente do programa do Little Nell, e viramos amigos. Os negros que conseguem sair da pobreza vivem numa espécie de bolha. À medida que subi na carreira, percebi que havia cada vez menos negros nas reuniões de trabalho. Minha relação com Maverick passa pela música, pela comida, pelos negócios e pelos acontecimentos do nosso país. Somos muito ocupados, por isso em geral trocamos mensagens de texto, mais do que telefonemas.
16h00: Publico um stories no Instagram. É sobre a minha avó. Fui criado por ela, e tenho pensado muito nisso por causa dos últimos protestos. Depois que me formei na faculdade de gastronomia, ela me disse que eu tinha de cortar o cabelo, mudar meu jeito de falar e de me vestir. Ela falou tudo isso com dor no coração, mas sempre nos ensinou a sentir orgulho da nossa cultura, da nossa comida, da nossa música e do nosso jeito de ser. Minha avó sabia que os Estados Unidos estão longe de serem perfeitos, mas são o nosso país.
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QUARTA-FEIRA
05h00: Eu não vivo sem café. Prefiro ele amargo, bem torrado; se tivesse tempo, passaria o dia inteiro
pesquisando pequenos produtores que fazem os grãos do jeito que gosto. Como não tenho, sou assinante do Trade Coffee Club, que entrega café na minha casa. É tudo uma questão de eficiência. Gosto do Rise and Shine, produzido pelo Greater Goods Roasters. Tenho uma máquina JURA Impressa Superautomatic A9.
10h00: Todos os dias, de manhã, tenho uma reunião com a equipe de campo para falar sobre temas como o acompanhamento da folhagem das videiras. Para fazer vinhos excelentes, é preciso ter uma equipe excelente. Brenna Quigley, uma jovem geóloga de Santa Barbara, está estudando nossos vinhedos para nos ajudar a traçar planos mais adequados ao nosso solo. Muitas vinícolas contratam consultores europeus, mas eu prefiro os americanos. Temos pessoas extremamente talentosas aqui mesmo. Na verdade, acho que os europeus estão aprendendo conosco agora que os vinhos da Borgonha são usados até para cozinhar, por causa das mudanças climáticas.
Meio-dia: Duas hora de reunião sobre branding. Estamos lançando uma linha nova, chamada Brendel,
batizada em homenagem a Leon Brendel – um enólogo lendário que ficou conhecido por cultivar castas esquisitas, como Grignolino. Vamos também botar no mercado o Ink Grade, cujo nome faz referência a um dos vinhedos mais antigos, bonitos e elevados do Napa. O Ink Grade é um vinho de guarda, enquanto o Brendel é mais para o dia a dia.
QUINTA-FEIRA
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06h00: Aula de spinning pela internet com Aaron Hines, personal trainer que tem uma academia em Los Angeles, onde nos conhecemos. Ele toca umas músicas ótimas, e embora seja professor de clientes super famosos, não dá moleza para ninguém.
10h00: Call de alinhamento com Gaylon, dono da vinícola. A maioria dos proprietários tem dificuldade para identificar os vinhos que produz, e não demonstra o menor interesse pelo que acontece no campo. Mas Gaylon é agricultor, ele gosta mesmo é de caminhar entre as videiras e dirigir trator. Em março, quando os efeitos da pandemia começaram a ficar claros, fui ao Arkansas conversar com ele. Passamos três dias analisando todos os detalhes do negócio.
16h00: Reunião por Zoom, tensa porém produtiva, com a Hue Society – organização que trabalha para aumentar a diversidade no mundo do vinho. Todos nós queremos contribuir com a comunidade, de alguma maneira, mas discordamos sobre como fazer isso. Pessoalmente, eu gostaria de centrar esforços em oportunidades de educação e emprego. No final da reunião, decidimos criar um novo braço chamado Roots Fund. Esse fundo vai oferecer bolsas de estudo para negros na área de vinhos, com garantia de colocação profissional no setor. Vinte vinícolas já se comprometeram verbalmente a participar.
SEXTA-FEIRA
05h00: Sou cheio de energia, minha cabeça funciona rápido e eu falo muito depressa. Por isso, para alívio do pessoal que trabalha comigo, passei a meditar todos os dias de manhã. Eu uso o aplicativo Calm: se até o LeBron gosta dele, por que eu não gostaria? Esse hábito aumentou minha eficiência, o que é muito importante: administrar bem o tempo é fundamental para o meu trabalho.
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06h00: Quem faz tudo certinho no campo deve sentir medo todos os dias quando acorda. Talvez o solo do Napa seja o mais diverso do mundo; a tentativa de compreender todas as variáveis – sejam as raízes, a umidade ou os efeitos das mudanças climáticas – nos mostra o quanto somos ignorantes. Hoje eu caminhei pela Ink Grade com nosso diretor de operações. Para alguém que quer entender tudo, como eu, foi um passeio meio assustador: as videiras estão voltadas para o norte, para o sul e para o leste, e recebem luz solar de todos os lados. É complicado, mas essa é a realidade de quem trabalha com a natureza.
Meio-dia: Acabamos de anunciar que o Juneteenth [data que celebra a emancipação dos escravos nos Estados Unidos] vai passar a ser um feriado remunerado para os funcionários da nossa empresa.
14h00: Conferência online com o Court of Master Sommeliers, organização que certifica profissionais do vinho e tem sido acusada pela imprensa de não ser inclusiva. [A entidade concordou em parar de usar o termo “máster”, ou “senhor”, considerado ofensivo pela comunidade negra.] Essas conversas são para valer, não são reuniões de conselho que pretendem acalmar as pessoas em troca de doações. Tudo no setor de hospitalidade precisa mudar – desde o garçom do restaurante chique que oferece um serviço de segunda classe aos clientes negros, por achar que eles não vão deixar gorjeta, até a forma como o público reage quando entra numa loja de vinhos e vê que o atendente é negro.
17h30: Hoje vou fazer um jantar para minha namorada, a enóloga Maya Dalla Valle, e mais algumas pessoas do setor. E estou atrasado. Tanto Maya quanto eu fomos criados por famílias que gostavam de ficar juntas e comer juntas: ela é descendente de italianos e japoneses, e a minha casa parecia o filme “Alimento da Alma”. Portanto essa é uma paixão que nos une. Tem uma coisa engraçada com o pessoal do vinho: quando você vai jantar na casa deles, raramente servem o vinho que produzem. Mas eu adoro oferecer rótulos da Heitz, e hoje vamos abrir um chardonnay Heitz Quartz Creek 2018, de Oak Knoll, e um Cuvée Brendel Blanche de 2019. Mas esse não será o assunto. O vinho está na mesa, mas jamais deve ser o convidado de honra.
(Tradução: Beatriz Velloso)
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