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Como o crescimento implacável do mercado de ações salvou empresas

Emitir ações para captar dinheiro foi uma estratégia muito utilizada por empresas para driblar os efeitos negativos da pandemia

Como o crescimento implacável do mercado de ações salvou empresas
Uma das casas da AMC em Nova York (Foto: Carlo Allegri/Reuters)
  • Empresas atingidas duramente pela crise optaram por emitir obrigações para captar dinheiro no ano passado — um recorde de US$ 2,28 trilhões, 60% mais do que em 2019, de acordo com dados da Associação da Indústria de Valores Mobiliários e do Mercado Financeiro dos EUA
  • Foi uma solução atraente após o FED (banco central americano) ter cortado taxas de juros e começado até a comprar obrigações de empresas para estabilizar o mercado

(Emily Flitter, Matt Phillips e Peter Eavis/The New York Times) – No segundo trimestre do ano passado, enquanto a rede nacional de restaurantes 24 horas Denny’s fechava suas portas nas semanas de lockdown causadas pela pandemia, os credores da empresa avisavam que ela teria de pagar sua dívida rapidamente — ou enfrentaria as consequências. Com os bancos exigindo taxas de juros proibitivamente altas, a diretoria da Denny’s se voltou para o último lugar limpo e bem iluminado do mundo corporativo nos Estados Unidos: o mercado de ações.

A Denny’s emitiu no ano passado ações suficientes para captar quase US$ 70 milhões — o que foi insuficiente para resolver todos os seus problemas, mas bastou para evitar a catástrofe. E a Denny’s foi apenas mais uma das muitas empresas salvas por investidores do mercado de ações que se apressaram para comprar suas ações enquanto o mercado se aquecia, aparentemente incólume diante dos efeitos da pandemia.

Essa tendência, em que as ações se valorizam mesmo enquanto a economia se afoga, prossegue em 2021, e as empresas ainda estão tirando vantagem dela. Na quinta-feira, a AMC Entertainment Holdings se tornou a mais nova empresa a tentar se valer dos benefícios dessa absurda dinâmica de mercado. Com sua existência ameaçada por causa da pandemia, a rede de salas de cinema anunciou que emitiria mais 44,4 milhões de ações.

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Adicionalmente, um grupo de credores de Wall Street para quem a AMC devia US$ 600 milhões afirmou que converteria a dívida em ações da empresa, apostando que poderia ganhar mais dinheiro com pequenos investidores interessados nas ações do que com os pagamentos da própria empresa.

As coisas não costumam funcionar dessa maneira.

“Faz anos, décadas na verdade, que as corporações viraram as costas para os bancos”, afirmou R. Christopher Whalen, gestor financeiro de Nova York.

Isso se mostrou uma divisão mutuamente desejável, afirmou Whalen. As empresas captaram o dinheiro que precisaram, enquanto os bancos evitaram conceder empréstimos arriscados, a juros baixíssimos, e, em vez disso, ganharam sua parte ajudando as empresas a vender mais ações e obrigações.

Essa tendência é anterior à batalha entre os pequenos investidores reunidos no Reddit e os fundos de hedge tentando manipular o valor de ações de empresas em dificuldades, mais notavelmente a varejista de jogos eletrônicos GameStop.

Qual a lógica do mercado?

Considere o caso da Denny’s. Investidores tinham várias motivações possíveis para comprar suas ações. Alguns talvez quisessem aproveitar qualquer pequena alta no valor causada pela notícia do relaxamento das restrições aos restaurantes. Outros talvez tenham decidido que as ações da Denny’s tinham se desvalorizado tanto — de quase US$ 21 no início de fevereiro a pouco mais de US$ 5 em meados de março — que a única coisa que lhes restava era uma valorização.

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Mas parte da atividade do mercado em 2020 simplesmente não fez sentido, como quando investidores correram para as ações da Hertz depois de a empresa declarar falência, na prática liquidando os participantes da empresa.

Entre os maiores emissores de ações no ano passado estavam empresas como a Denny’s, em apuros: American Airlines, United Airlines e as operadoras de cruzeiros marítimos Carnival e Royal Caribbean, de acordo com a Dealogic, que monitora novos negócios de ações.

“Nunca deixamos de acreditar que os fundamentos do nosso negócio permanecem sólidos, e que continua a existir amplo entusiasmo e animação em relação aos cruzeiros”, afirmou o diretor financeiro da Carnival, David Bernstein, quando questionado se tinha se surpreendido com a recepção do mercado às ofertas da Carnival. “Como resultado, ficamos felizes e gratos ao ver a reação do mercado às nossas ofertas.”

A Carnival e outras empresas que emitiram ações tiveram a sorte de encontrar investidores prontos e à espera, já que os bancos não estavam interessados.

Empresas podem pegar dinheiro emprestado por meio de crédito bancário ou vendendo ações para investidores. O dinheiro emprestado pode, então, ser gasto em despesas cotidianas, novos investimentos ou recompras de ações — pelo menos em tempos de normalidade. No ano passado, porém, muitas das empresas que emitiram grandes quantidades de ações e obrigações corporativas precisaram do dinheiro para se manterem vivas.

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Somente no quarto trimestre, a Carnival captou US$ 4,5 bilhões com a venda de novas ações e obrigações. Seu diretor executivo, Arnold W. Donald, afirmou em uma reunião remota com analistas, em 11 de janeiro, que as ofertas foram “muito bem recebidas”, mas também que foram absolutamente necessárias. A Carnival começa o ano inserida em um “ambiente de lucro zero”, afirmou Donald. Em outras palavras, a única maneira de manter a empresa funcionando é com o dinheiro de investidores.

Até mesmo as companhias aéreas, que, diferentemente das empresas de cruzeiros marítimos, não estão completamente fechadas, dependem do dinheiro de Wall Street. A carga de endividamento total da American Airlines ultrapassou os US$ 40 bilhões no ano passado. Em 10 de novembro, quando a empresa propôs a emissão de 38,5 milhões de ações, ela afirmou em um comunicado que o dinheiro seria destinado a “propósitos corporativos em geral” e para “melhorar a posição de liquidez da empresa”. Traduzindo: a American precisou de mais ajuda para pagar suas contas.

Emitir ações para captar dinheiro

Empresas atingidas duramente pela crise também optaram por emitir obrigações para captar dinheiro no ano passado — um recorde de US$ 2,28 trilhões, 60% mais do que em 2019, de acordo com dados da Associação da Indústria de Valores Mobiliários e do Mercado Financeiro dos EUA. Foi uma solução atraente após o FED (banco central americano) ter cortado taxas de juros e começado até a comprar obrigações de empresas para estabilizar o mercado.

Mas emitir ações tem um atrativo peculiar. Um dos motivos é o fato de esta ser uma dívida que não precisa ser paga. Ao todo, as empresas emitiram US$ 342 bilhões em ações no ano passado, 76% mais do que em 2019. As aberturas iniciais de capital representaram US$ 85 bilhões desse montante, o que significa que a maioria das ações vendidas no ano passado veio de empresas que venderam ações adicionais para captar dinheiro.

De acordo com a Dealogic, os maiores emissores foram empresas de investimento em imóveis e construção de projetos imobiliários, muitos deles canais de investimentos em shopping centers e prédios de escritórios, que viram a receita com os aluguéis despencar durante o lockdown. Em seguida, vieram as empresas de assistência médica. Empresas do setor de lazer e recreação ocuparam a sexta posição entre os emissores mais frequentes.

Os bancos de Wall Street ficam com uma fatia generosa de quase toda essa atividade, independentemente de as empresas emitirem ações ou obrigações, e taxas recorde provenientes dessa atividade ajudaram a aliviar um ano que, de outra maneira, teria sido sombrio.

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Os bancos lucraram US$ 17,36 bilhões com seus mercados de participação patrimonial no ano passado, uma elevação de 121% em relação ao ano anterior, de acordo com dados da Dealogic. O ganho com taxas para ajudar empresas a vender obrigações foi quase tão alto, elevando-se em 60%, para US$ 11,3 bilhões.

Esse lucro foi crucial em um momento em que outros negócios nos quais Wall Street se especializa, como crédito direto a corporações e lares, sofriam. Os bancos também reservaram bilhões de dólares na expectativa de que o agudo declínio econômico causado pela pandemia desencadeasse quebras e falências, tornando impossível para as instituições financeiras cobrar juros de empréstimos pendentes.

(Tradução de Augusto Calil)

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