Comportamento

Criptomoedas estão provocando dúvidas entre muçulmanos

Autoridades religiosas aconselharam os muçulmanos a ficarem longe das criptomoedas

Criptomoedas estão provocando dúvidas entre muçulmanos
Como os preços do bitcoin e de outras criptomoedas subiram rapidamente no ano passado, milhões de pessoas no mundo islâmico começaram a investir nelas (Foto: Envato)
  • A religião tem um rico histórico de estudos a respeito de questões financeiras, e a lei islâmica, ou sharia, tem uma vertente financeira firme. Durante gerações, os líderes religiosos debateram as passagens do Alcorão que falam sobre dinheiro
  • Outras inovações financeiras, como moedas que não são atreladas a reservas de ouro, cartões de crédito e negociação de opções de commodities, provocaram debates no passado

Gerrit De Vynck – The Washigton Post – Mu’aawiyah Tucker é um homem religioso. Como o Alcorão proíbe ganhar dinheiro com as taxas de juros, Tucker há anos tenta evitar os bancos tradicionais. Por um tempo, ele se tornou, como se autodescreve, um “besouro de ouro” (termo usado em inglês para aqueles que investem em ouro), investindo suas economias no metal precioso. Então, Tucker, 40 anos, descobriu o bitcoin.

Atualmente, o programador e web designer que vive em Londres tem um canal no YouTube no qual tenta dissipar as preocupações que outros muçulmanos talvez tenham em relação às criptomoedas, argumentando que elas realmente oferecem benefícios para aqueles que buscam viver seguindo fielmente a religião. Em sua opinião, o tradicional princípio islâmico de recompensa postergada se alinha bem com o movimento “hodl” – uma crença entre os investidores em criptomoedas de que ignorar os críticos e manter seus investimentos, no fim das contas, valerá a pena.

“Toda a mentalidade ‘hodl’ é, na verdade, em sua essência, a mesma coisa. Manter algo e esperar pela recompensa mais tarde”, diz Tucker.

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Se a criptomoeda é mesmo permitida, no entanto, é uma questão de debate. Nos últimos meses, autoridades religiosas de destaque publicaram fátuas (parecer emitido por uma autoridade reconhecida pela lei islâmica sobre um tema) aconselhando os muçulmanos a ficarem longe das criptomoedas, argumentando que suas as flutuações de preços descontroladas e origens obscuras as tornam mais parecidas com os jogos de azar, que também são proibidos pelo Alcorão.

“A comercialização de criptomoedas, como commodities ou ativos digitais, é ilegal porque tem elementos de incerteza, apostas e danos”, disse Asrorun Niam Sholeh, chefe de decretos religiosos do conselho indonésio de estudiosos islâmicos, a repórteres em novembro depois de emitir uma fátua contra o uso de criptomoedas.  “É como uma aposta de jogo.”

Embora não menos devoto, Tucker faz parte de uma vanguarda mais jovem e experiente em tecnologia que defende a criptomoeda como uma alternativa viável ao sistema financeiro tradicional para os muçulmanos. Tucker estudou a lei islâmica com intelectuais respeitados internacionalmente em Medina, a cidade onde o profeta Maomé está enterrado, e agora administra a CryptoHashReview, empresa de consultoria que assessora projetos de criptomoedas sobre como agir em conformidade com a lei islâmica.

“Se o sistema é tão ruim, como eu poderia justificar permanecer nele se eu tenho outras possibilidades?”, questiona Tucker.

Debates como este não são incomuns para o islamismo. A religião tem um rico histórico de estudos a respeito de questões financeiras, e a lei islâmica, ou sharia, tem uma vertente financeira firme. Durante gerações, os líderes religiosos debateram as passagens do Alcorão que falam sobre dinheiro. Geralmente, as finanças islâmicas procuram estabelecer regras para negócios e investimentos a fim de garantir que um grupo não tire vantagem de outro ou use o dinheiro para oprimir alguém.

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Outras inovações financeiras, como moedas que não são atreladas a reservas de ouro, cartões de crédito e negociação de opções de commodities, provocaram debates no passado.

Há muito em jogo. Como os preços do bitcoin e de outras criptomoedas subiram rapidamente no ano passado, milhões de pessoas no mundo islâmico começaram a investir nelas, sobretudo na Indonésia e nos países do Golfo Pérsico, que têm grandes populações de jovens bem integrados ao universo digital.

Os defensores dizem que o setor das criptomoedas produzirá a próxima onda de inovação tecnológica, trazendo riqueza e oportunidades para aqueles que participarem dele. Os céticos argumentam que o mundo das criptomoedas está repleto de golpes e destinado a um colapso que poderia acabar com as economias dos investidores comuns, que não podem se dar ao luxo de arcar com tais perdas.

Anas Amatayakul passou a vida estudando a lei e a história islâmicas, participando de conferências em todo o mundo e lecionando em algumas das melhores universidades da Tailândia, seu país natal. Ele fala com a paciência e a obstinação de um professor experiente.  Ao ser questionado a respeito do que pensa em relação às criptomoedas, ele diz: “Você tem um tempinho? Preciso falar de tudo que aconteceu antes”, e começa a contar a história de Deus criando Adão.

Amatayakul, que também liderou o comitê que assessora o Banco Islâmico da Tailândia com relação a sharia, diz que não é contra a mudança tecnológica, mas como o mundo das criptomoedas está se movimentando muito rápido, ele aconselha os muçulmanos a ficarem longe delas por enquanto.

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“Isso é para proteger as pessoas em questões de patrimônio”, diz Amatayakul.  Muitas pessoas procuraram seus conselhos acerca das criptomoedas, diz ele. Um de seus ex-alunos, atualmente estudando no Cairo, chegou até mesmo a discutir com o colega de quarto porque a conta de energia deles estava aumentando devido ao grande uso de eletricidade para rodar um software que faz a mineração ou cria novas criptomoedas.

Não há uma autoridade central no islamismo que possa tomar uma decisão final a respeito das criptomoedas. Intelectuais escrevem livros, dão palestras e se reúnem em universidades ou em conferências religiosas para discutir novas questões. Muitos dos países de maioria muçulmana têm conselhos de sharia, formados por líderes religiosos respeitados, que emitem fátuas e justificam suas decisões. Embora não sejam obrigatórios, os conselhos podem influenciar a política de governo, e os muçulmanos religiosos costumam recorrer a eles para ter uma orientação.

Apesar de as criptomoedas existirem há anos, o valor delas disparou recentemente. O valor das criptomoedas como um todo triplicou de US$ 770 bilhões, no início de 2021, para US$ 2,9 trilhões, em novembro, de acordo com o site de monitoramento de criptoativos CoinMarketCap. Uma queda fez sumir quase metade disso tudo, mas os preços das criptomoedas mais conhecidas ainda são exponencialmente maiores do que há apenas alguns anos. Um único bitcoin comprado em 2013 por US$ 30 ou US$ 40, vale cerca de US$ 40 mil hoje.

De acordo com um relatório de novembro do Pew Research Center, um em cada seis americanos investiu ou fez transações com criptomoedas, embora existam poucos usos práticos para elas além da especulação e do investimento atualmente. Algumas empresas, entre elas a Microsoft e a Whole Foods, aceitam criptomoedas como pagamento, mas o uso delas é muito limitado.

As criptomoedas são diferentes de outros produtos financeiros porque as transações são registradas usando a tecnologia conhecida como blockchain, que é operada em muitos computadores diferentes em todo o mundo. Em vez de um banco ou governo atuar como árbitro determinando quem é dono do quê, o blockchain permite que as transações sejam registradas sem uma autoridade central.

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As finanças islâmicas se adaptaram às mudanças no passado. Tradicionalmente, investimentos e moedas tinham que estar atreladas a ativos físicos como ouro, diz Amatayakul. Mas quando moedas fiduciárias como o dólar americano, que não são atreladas ao ouro, se tornaram mais populares no decorrer do século 20, os estudiosos da sharia as estudaram e acabaram incorporando-as às finanças islâmicas. Hoje, as moedas fiduciárias são permitidas porque são emitidas e garantidas por uma autoridade conhecida, neste caso, o governo dos Estados Unidos, diz Amatayakul.

“Mas, no caso das criptomoedas, elas são todas desconhecidas. Quem as coloca em circulação?”, diz Amatayakul. O mundo das criptomoedas está repleto de golpes conhecidos como “rug pulls” (puxadas de tapete), nos quais um criador de uma nova moeda recebe dólares de investidores e depois some com o dinheiro.

Tucker reconhece que as criptomoedas ainda estão cheias de investimentos questionáveis e que muito do interesse nela, por parte de muçulmanos ou não, é motivado pela capacidade de ganhar dinheiro especulando. Muitas pessoas perguntam a ele se determinadas criptomoedas são alinhadas com a sharia, diz ele.

Recentemente, alguém lhe perguntou se uma moeda chamada WifeDoge estava em conformidade com a lei islâmica. A Dogecoin, criptomoeda que começou como uma piada sobre o meme da Internet com um cão da raça Shina Ibu conhecido como “doge”, disparou no ano passado quando o CEO da Tesla, Elon Musk, começou a tuitar a respeito dela. Mas Tucker diz que nunca tinha escutado falar da WifeDoge (esposa de doge). Perplexo, ele fez uma pesquisa para saber do que se tratava.

“Vejam só, existe uma moeda chamada WifeDoge”, diz ele. “Tem um site e tudo com uma foto do doge e a versão feminina dele usando um vestido de noiva”, diz ele. “O que é que é isso?!”

Tucker diz que exemplos como esse o ajudam a entender por que os estudiosos da lei islâmica estão resistindo às criptomoedas. Entretanto, ele acha que a resistência surge principalmente devido à falta de compreensão da rápida evolução da tecnologia.

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“Estou nessa área desde 2017. Tenho experiência com tecnologia. Sou tecnicamente jovem, então, por isso, é mais fácil entender esses conceitos”, diz Tucker. Ele conta a história de um encontro com um sábio para tentar explicar como funciona o blockchain.

“Ele ficou comigo durante sete horas, sete longas horas”, diz ele. “Foi naquele momento que percebi que temos um longo caminho a percorrer porque é uma mudança e tanto de paradigma.”

Se o mundo islâmico mergulhar de cabeça ou evitar as criptomoedas, isso pode ter um impacto no preço delas e no futuro da tecnologia. Quatro dos 10 maiores fundos soberanos são administrados por países de maioria muçulmana no Golfo Pérsico, que juntos são donos de centenas de bilhões de dólares, de acordo com o Sovereign Wealth Fund Institute. Embora esses fundos não sejam obrigados a investir apenas em ativos compatíveis com a sharia, grande parte deles faz isso.

“Acredito nelas”, disse Khaldoon Al Mubarak, chefe de um dos fundos soberanos dos Emirados Árabes Unidos, em entrevista em dezembro à CNBC, quando questionado a respeito das criptomoedas. “Embora muitas pessoas sejam céticas, não me enquadro nessa categoria.”

Muneer Khan, chefe de finanças islâmicas e de atividades no Oriente Médio do escritório de advocacia britânico Simmons and Simmons, trabalha com finanças islâmicas há 20 anos, assessorando bancos sobre como criar produtos financeiros que obedeçam à sharia.

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“Sempre houve um fator de debate, sobretudo em torno das formas de financiamento mais recentes e menos compreendidas”, diz Khan de sua casa em Dubai. “Há muitos estudiosos da sharia em todo o mundo, mas há relativamente poucos especialistas na área de finanças, e há ainda menos deles que entendem as finanças modernas.”

Isso cria uma situação em que os líderes espirituais, que talvez não entendam completamente as criptomoedas, estão dando declarações a respeito delas para que os demais as sigam. “Para o homem comum, isso pode significar um forte ‘não vou mais fazer isso’. É um alerta no qual eles confiarão sem entender as nuances”, diz Khan.

Contudo, alguns países de maioria muçulmana, como os Emirados Árabes Unidos e a Arábia Saudita, estão considerando criar suas próprias moedas digitais.

“Os governos estão analisando como podem diversificar suas economias longe dos hidrocarbonetos.  Parte disso significa observar fintechs e parte das fintechs são os ativos digitais”, diz Khan. Jovens em países muçulmanos também estão cada vez mais interessados em criptomoedas como forma de aumentar suas oportunidades.

“De modo geral, há um abismo entre as gerações mais velhas e as gerações mais jovens, e a criptomoeda é vista como um nivelador, um equalizador, uma nova oportunidade para uma redefinição”, diz ele. “Isso não é diferente no mundo muçulmano.”

Khan espera que a adoção das criptomoedas no mundo muçulmano aumente da mesma forma que em outros lugares. Além disso, segundo ele, há características das criptomoedas que, na verdade, talvez atraiam muçulmanos conservadores. “Não ter juros ou taxas exorbitantes, e ter eficiência e menos conflito em termos de taxas e custos – tudo isso são aspectos inerentemente compatíveis com a sharia”, diz ele.

Mas, por enquanto, muitos estudiosos das leis islâmicas não estão convencidos. O grande número de golpes, a natureza altamente especulativa das criptomoedas, a conexão com a lavagem de dinheiro e o crime, além da dificuldade em entender quem exatamente está por trás de certos projetos contribuem para uma situação em que a maioria das pessoas deve evitar as criptomoedas, diz Amatayakul.

“As criptomoedas e o bitcoin estão na fase da infância”, diz ele. “Devemos permitir que cresçam e se tornem adultos.”// TRADUÇÃO DE ROMINA CÁCIA

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